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Poesia, a suprema resistência

Curadoria de João Gesta

O filósofo Gaston Bachelard escreveu em L’air et les songes (1943) que a poesia podia, se lida em voz alta, ser a forma de nos libertarmos, quando encerrados num espaço, como a nossa casa. Num ano em que a palavra ficou suspensa, convocamos sete poetas do Porto de gerações diferentes, habituais das Quintas de Leitura, marca incontestada do Teatro Municipal do Porto, para uma memória futura fecunda, desarmante, livre e insubmissa. 

O contágio redentor de Inês Lourenço (1942). A irreverência de Rosa Alice Branco (1950). A nostalgia da infância de Daniel Maia-Pinto Rodrigues (1960), agora que a idade lhe corre depressa pelos inícios da noite. O otimismo desencantado de João Habitualmente (1961). Incubar o sonho e preparar a metamorfose, a receita poética de Rui Lage (1975). A resignação irónica de Filipa Leal (1979). Por fim, o anjo, o terrível, o começo, três sinais eminentemente rilkeanos na poesia urgente de Andreia C. Faria (1984). 

Sete gritos veementes em poemas “feitos com as sílabas dos sonhos”, instantes fosforescentes, elucubrações sobre este mundo-bicho, absoluto, que insiste em fintar-nos.

Inês Lourenço

Imunidade


Nenhuma estirpe se acerca. Sempre 
sonhaste uma ilha deserta
na abundância de frutos e mesmo aquela árvore
de fruta-pão que encontraste nas ilhas de coral
das leituras de juventude. Ias finalmente
acabar aquele Tolstoi em que avançaras
nas descrições militares e reatar o fio
da Recherche ritmicamente interrompida. Seguiriam contigo
todas as versões da Bíblia incluindo as apócrifas mais outras
tantas das Mil e Uma Noites porque
sempre preferiste Sherazade a Homero ou Virgílio. Todas
as cantatas e invenções de Bach mais os lieder de Schubert
esse maravilhoso mal-amado fidelíssimo de emoções. E a Poesia?
Todos os poemas de todos os idiomas estariam contigo
e só esse contágio milenar habitarias 
num redentor naufrágio.

  • Imunidade (Diseuse: Cristiana Sabino)

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Rosa Alice Branco

O Mapa Shandy


A propósito de um pequeno livro, o modo imaterial
de conferir sentido ao espaço, até mesmo 
entre as letras quando as raparigas florescem 
a primavera e trazem beijos avulsos nos lábios.
Um livro de bolso que passa de folhas,
passa de mão e de casaco e o que acontece
às letras é um mistério porque nunca ninguém lê
o mesmo livro e as raparigas refrescam os pés
e o riso num regato ou num lago citadino onde é proibido
o reflexo da pele nas águas turvas. É por isso 
que os homens não sabem que as amam nesse desalinho, 
ou talvez estejam um pouco atrasados na estação do ano 
e baixem os olhos como se contemplassem um livro, 
ligeiramente tímidos perante tal imensidão. As páginas 
dão voltas ao parque e voam sem vento no coração
das raparigas portáteis, um coração de ir e vir,
a mão a portar um livro e a folha em que volvem
personagens de uma vida alucinante. Voam com o livro
preso à ilharga dos dias e jamais passam à frente
do instante. É assim que desenham o mapa da vida portátil
onde partilham a esplêndida insolência nómada,
a dispersão essencial, as feridas que alguém
oferece no caminho e só param diante das coisas
escondidas para que as rugas do olvido abram
para espaços viajantes com uma pequena mala
desfazendo a ilusão sedentária de um pisa-papéis.
A propósito de um pequeno livro onde o amor
se deita no parque e as raparigas descalças ignoram
que conspiram contra a ilusão colecionável do mundo.

  • O Mapa Shandy (Diseuse: Cristiana Sabino)

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Daniel Maia-Pinto Rodrigues

Nostalgia


Vão as horas pelo tempo da tarde
nos lugares que me estão distantes,
crianças correm pelas horas da tarde
pelos espaços ao sol que há no tempo.

A nada assisto do que vai decorrendo
nos lugares que me estão distantes,
correm adolescentes pelo fim das tardes
sob céus raiados em regressos a casa.

Acontecem-me longe os companheirismos da juventude
ao estar neste lugar que lhe é distante,
corre-me depressa a idade pelos inícios da noite
pelos espaços à sombra que há no tempo.

  • Nostalgia (Diseur: Isaque Ferreira)

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João Habitualmente

A montanha que pariu um rato


A montanha pariu um cão. O cão, sozinho naqueles ermos, gania de tédio. Então a montanha resolveu dar-lhe um companheiro e pariu um gato. Logo o cão transformou o ganido em furioso rosnar e divertia-se pelas tardes a perseguir o gato. Então o gato perguntou à montanha se a vida dele ia ser sempre aquilo. A montanha compreendeu perfeitamente e resolveu dar-lhe um companheiro. A montanha pariu um rato. E logo o gato transformou o miar em assanhado bufar e desatou a perseguir o rato. O rato passava as tardes a fugir do gato até que, do fundo da toca, perguntou à montanha se a sua vida ia ser sempre aquilo. A montanha compreendeu perfeitamente e resolveu parir gente. E logo começou o rato perseguindo aquela pobre gente, que via os seus haveres arruinados por esse tremendo animal. Foi então que um dos dessa gente teve a ideia de trazer um gato para sua companhia e nunca mais os ratos o importunaram. Mas outro dos dele importunava-se com os gatos. Teve então a ideia de ir buscar um cão e nunca mais os inefáveis gatos o importunaram. Mas havia outro que não gostava de cães e resolveu ir buscar um dos dele. E nunca mais os outros que eram gente mas não eram dos dele o importunaram. Daí em diante cães, gatos e ratos passaram a ser meros animais de companhia. Pelas tardes gente passou a perseguir gente e depois pelas noites e nunca mais ali houve parança ou monotonia. Depois ainda pelas madrugadas, ainda mal se via e já uma gente perseguia outra e lhe acirrava os seus cães, que passaram a atacar também os cães que os outros acirravam contra eles, num clamor de uivos e ganidos. Alguma gente aflita perguntou à montanha se a sua vida ia ser sempre aquilo. A montanha compreendeu perfeitamente e resolveu parir um deus. Mas logo uns duma gente o arrebataram só para eles e a montanha pariu vários outros deuses, de modo que não tivessem uns que invejar os dos outros. Atónita, olhou do alto do seu cume para o imenso bulício que provocara a seus pés: gatos perseguiam ratos, cães perseguiam gatos que perseguiam ratos, gente perseguia gente que era perseguida por ratos que eram perseguidos por gatos que eram perseguidos por cães. E deuses perseguiam gente, gente perseguia deuses, deuses perseguiam deuses que perseguiam gente. Cansada, perguntou-se a si mesma se a sua vida ia ser sempre aquilo. E compreendeu perfeitamente que nunca mais ali haveria sossego, mas apenas gargalhadas e urros de uns e gemidos e sangue dos que corriam menos e ficavam por baixo.

  • A montanha que pariu um rato (Diseur: Isaque Ferreira)

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Rui Lage

Ode cavernícola


Grutas vivas, ecoantes,
gargantas rumorosas do invisível,
juncadas de ossos misturados de feras
e antepassados,
covas onde o luto primeiro pernoitou.
Secretos cinemas de hematite e manganésio negro
onde a tocha projectava a migração das manadas
e o filme propício das caçadas,
antes da foice, do arado,
das enxadas.

Grutas de iniciados, recônditos sifões
do outro mundo, ânforas escuras
onde os sonhos estagiam e as metamorfoses
se preparam.
Grutas com mãos debuxadas a carvão
e pegadas de criança em fina argila vincadas.
Grutas de harpas cristalinas, pneumáticas,
de estalactites dedilhadas, cavernas quentes,
incomunicadas.
Igrejas pétreas onde os santos são equídeos
e auroques, mandatários da tribo
para atar à rocha um sentido
no país invertido onde o breu é o astro sortílego
que a servidão do visível revoga
e os ardis da superfície desfaz.

Acharei uma gruta resguardada, 
no mato dissimulada ou em falésia alcandorada,
com fenda a jorrar um pouco de água
para o branco da calcita triturada.
No ocre hei-de untar os dedos
e pintar a tua vulva
numa parede estrelada, orquídea rara,
antecâmara do mundo.
E que lá fora avance o deserto e o plástico,
e aquáticas se tornem as cidades,
e as florestas devenham infecundo pasto
e os mares estéreis caldos, sem pescado.
Que trine o último pássaro
e o pólen seque nas flores, por insectos intocado.

Lavrem lá fora as pestes,
finem-se os hábitos vorazes.
Eu estarei na gruta a incubar o sonho,
vírus benigno nos pulmões da terra.
Terei por lucidez o mistério e o recuo por conduta,
o amor ao distante,
a renúncia à luta.

  • Ode cavernícola (Diseur: Isaque Ferreira)

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Filipa Leal

Os dias sem surpresa | Playing God ou o lava-louça de Deus


OS DIAS SEM SURPRESA


Os dias mais silenciosos são dias magros
como a diet coke, dias em que nem sequer notamos
os navios doentes, navios de quarentena onde,
felizmente, nunca poderíamos ter chegado a entrar,
nunca teríamos chegado a chegar
por não sermos capazes da primeira partida.

Os dias mais silenciosos não são tristes:
são de rejeitar cruzeiros fixos, pasteleiros de máscara
de ferro a fazerem bolos doentes para hóspedes doentes.

O mundo, Drummond, o vasto mundo está horrível
e tudo o que consigo é pedir um copo de branco,
Dona Ermelinda de Freitas, o mais barato na esplanada
cheia de gente espantada com ainda haver sol.
Os dias mais silenciosos têm uma bandeira vertical,
caída de não haver vento, e muita gente 
a andar de bicicleta.

Aos 40 anos, tudo o que desejo são estes dias 
sem surpresa: chegar ao céu, sentar-me,
efectuar o pagamento no acto da entrega. 
(Inédito, 2020)

PLAYING GOD OU O LAVA-LOUÇA DE DEUS

Hoje salvei um bichinho da conta enquanto arrumava a cozinha (tirei-o do lava-louça com um papel e atirei-o pela janela) e pensei que Deus pudesse salvar-nos também enquanto arruma a cozinha d’Ele mas, por favor, sem nos atirar pela janela. Amém.
(Inédito, 2020)

  • Playing God ou o lava-louça de Deus (Diseur: Isaque Ferreira)

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Andreia C. Faria

Para o começo


Pedem-me poemas,
que lhes force o esqueleto
para que apareçam na radiografia deste tempo
os ossos muito limpos.

Pedem-me a flor de um verso
desabrido, menos que precário,
uma flor para a lapela deste grande mundo.

Pedem-me as partes raras dos meus dias,
a terra toda à espera
da minha lombada legível, as minhas
palavras caducas.

Paremos então a meio desta página
onde venho
pródiga
imprimir o anjo
para o começo do terrível

  • Para o começo (Diseuse: Cristiana Sabino)

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