Entrevista
Cláudia Dias & Idoia Zabaleta
Novembro
2022
Qua
9
Ao longo de sete anos, Cláudia Dias criou uma peça para cada dia da semana. Cada espetáculo corresponde a um encontro com outra disciplina artística, fazendo uma ligação entre artistas, cronologias, países e política. Em colaboração com diferentes pessoas, entrou num combate de boxe, abriu um buraco negro, adiou o fim do mundo, uniu linhas que se encontravam separadas, deu novos usos a palavras gastas. Conversámos com a criadora e com Idoia Zabaleta (cocriadora da peça Quinta-feira: Abracadabra e figura envolvida no projeto Sete Anos Sete Escolas e no livro Domingo) sobre Sete Anos Sete Peças. Um ciclo que conta também com várias conversas, um projeto desenvolvido com estudantes do ensino secundário e uma coleção de sete livros. Entre os dias 14 e 26 de novembro, o universo de Cláudia Dias ocupa os vários espaços do Teatro Campo Alegre.
Sete Anos Sete Peças, todas elas atravessadas por uma urgência de construção de coletivos. Podemos considerar o projeto como uma metáfora à própria construção da democracia?
Cláudia Dias: Este projeto, Sete Anos Sete Peças, foi pensado muito nessa perspetiva de encontrar e de construir coletivo. Todos os meus trabalhos anteriores eram trabalhos no formato a solo, uma vez que estava também numa fase de descoberta do meu próprio universo. De facto, com este projeto, inauguro um salto nessa direção de construção de coletivo e também na relação com o contexto social, político e económico do país, uma vez que falamos de 2016 até agora. Se olharmos para trás, estamos a falar de anos atravessados por uma crise não apenas económica, mas também política e social, onde as questões ligadas à democracia — e eu diria, talvez, aquelas menos evidentes — estavam presentes. Eu senti essa necessidade, enquanto artista, de fazer o meu statement relativamente a isso. Uma dessas questões mais invisíveis era a narrativa de então sobre a inexistência de futuro. Os nossos líderes políticos falavam desta inexistência de futuro e de alternativa. Eu achei essa narrativa muito violenta para se ter com as pessoas e quis, realmente, construir um projeto que comunicasse o oposto; que comunicasse esta possibilidade de que os futuros estão sempre à nossa mão e nós temos sempre o poder de os construir. Somos, nós, os construtores do futuro. Não precisamos de ter alguém que nos diga como vamos construir o nosso futuro. Portanto, é um projeto artístico, obviamente, mas muito impregnado nessa força de construção de coletivos, de construção de relações democráticas, mas, sobretudo, de construção de futuro.
De que forma o processo criativo se relaciona com essa urgência e com a prática democrática, nomeadamente, no diálogo com diferentes linguagens artísticas e diferentes artistas? Como dialogam a Cláudia-artista e a Cláudia-cidadã?
Cláudia Dias: Este projeto foi também pensado com uma direção específica: sair de mim e ir na direção do outro – o encontro com o outro. Todo o dispositivo das peças parte de um dispositivo de espera, onde duas pessoas se encontram frente a frente, pela primeira vez. Alguém faz um gesto e, a partir daí, inaugura-se todo um processo de criação. Eu acho que este é um gesto democrático: ter duas pessoas, frente-a-frente, de forma paritária, e partir do que cada uma traz, sem relação hierárquica do criador-cocriador ou criador-intérprete. Um dispositivo igualitário, se assim quiserem. A peça resulta do que acontecer nesse primeiro encontro. Este desejo de ir ao encontro do outro resultou em ir ao encontro de muitos outros. Alguns com quem já tinha relações de cumplicidade, nomeadamente a Idoia Zabaleta, com quem já tinha trabalhado noutros projetos. A Idoia convidou-me para lecionar alguns workshops no País Basco e fizemos ainda um projeto grande na área da criação artística, via workshop, nesta parte esquinada da península. Outros presentes são, por exemplo, o Jaime Neves, que vem da área do muay thai, foi uma descoberta interessante, visto ser alguém que vem de fora do meio artístico; o Igor Gandra, que vem de outro território mais ligado ao teatro de objetos e de marionetas, também, um desejo antigo; o Luca Bellezze, que vem da área do clown e da prática teatral de rua, ou seja, um mundo completamente diferente do meu; e outros, tais como o António Jorge Gonçalves, que teve um papel importante no projeto Sete Anos Sete Livros, e também Vasco Vaz e Miguel Pedro, que vêm da música e integraram a última peça, Sexta-feira: o fim do mundo... ou então não.
Idoia Zabaleta: Tenho o prazer de participar neste projeto fascinante, acompanhando a Cláudia no Quinta-feira: Abracadabra. Calhou-me a quinta-feira, esse dia da semana que é bastante alegre porque já é quase fim de semana [risos]. Estreamos esta peça em 2019, no País Basco, e em 2020 foi apresentada em Portugal. Abracadabra faz referência à palavra que tem a capacidade de convocar ação e potência. A peça é sobre isso: duas mulheres que contam histórias. Era uma vez uma mulher que se encontra com outra mulher e lhe diz: “dá-me algo”, e a outra responde: “toma tudo”. É uma peça que conta contos. Convoca a palavra e a capacidade que tem de mobilizar os corpos. Há uma responsabilidade que temos, todas, sobre as palavras que dizemos e colocamos nos nossos corpos.
Tal como disse a Cláudia, conhecemo-nos há quase uma década num workshop em Barcelona. Quando a vi trabalhar, percebi que queria trabalhar com ela num tipo de aproximação à prática artística que ela propunha com um conjunto de colegas, com os quais foi desenvolvendo uma metodologia de composição em tempo real. Soube, claramente, que queria trabalhar com ela no País Basco para que compartilhasse nesse contexto, onde trabalho, essa aproximação à prática artística no sentido de fomentar e gerar ideias no tecido [artístico local]. Partindo de uma possibilidade de prática coletiva, trabalharmos juntas, sermos capazes de trabalhar juntas, através de um não-estar necessariamente de acordo; do dissenso; de um posicionamento crítico e autocrítico; e, ainda, de uma posição de distância.
A Cláudia e os seus colegas desenvolveram essa metodologia, um sistema muito claro de trabalhar a partir desta posição de distância, mesmo sem estar completamente de acordo sobre o que estava a ser defendido, sobre a operação dos materiais com que estavam a trabalhar, mas que, ainda assim, produzia sentido.
Esta questão interessou-me, em particular, e a partir daí, começamos a nossa relação, através dessa metodologia de trabalho. E, bem, devo dizer que [a Cláudia] é uma pessoa com quem aprendi muito no que diz respeito ao rigor da prática artística, num entendimento de que são os materiais, as coisas que estão a ser produzidas, que têm um potencial de ação e de convocar o sentido, mais do que aquilo possa ou não interessar a cada uma.
No Quinta-feira: Abracadabra, isso concretiza-se, de alguma maneira, na relação entre nós e com o resto da equipa. Há mais pessoas, nunca estivemos sozinhas. Foi muito bonito de ver que, apesar de uma capacidade de leitura muito similar das coisas, isso concretiza-se na diferença, bastante óbvia, entre essas duas mulheres, na diferença de histórias que as atravessa, mas que são capazes de produzir sentido apesar de/partindo dessa diferença.
No dia 26 de novembro, apresentar-se-á o resultado do projeto Sete Anos Sete Escolas desenvolvido com estudantes de duas escolas profissionais do Porto. Podem partilhar connosco como tem sido esse trabalho, de forma coletiva? Sentem que tem contribuído para uma capacitação, uma emancipação, até, do grupo, enquanto cidadãos e cidadãs?
Cláudia Dias: O projeto Sete Anos Sete Escolas tem sido desenvolvido desde o fim de 2016. Nos dois primeiros anos, o projeto aconteceu apenas na cidade de Almada, em escolas públicas. A partir de 2018, começou a ser implementado na cidade do Porto. É um projeto que visa a capacitação de alunos das escolas públicas — sejam profissionais, de ensino regular ou de outros formatos — via práticas artísticas. Não estamos na escola para formar artistas, não é esse o nosso objetivo. O nosso objetivo é trabalhar com estes jovens no sentido da sua capacitação enquanto cidadãos e cidadãs com pensamento critico, conscientes, alerta, capazes de descodificar e ler as diversas mensagens do dia a dia e dos vários meios de comunicação existentes. Que se constituam, eles próprios, defensores da democracia, no sentido de perceberem qual o sistema democrático, a importância da sua participação e o risco da sua demissão, sobretudo no contexto mundial que estamos a viver, em que os neofascismos estão, novamente, a bater-nos à porta. Este é o grande objetivo.
No contexto do ciclo, que agora apresentamos no Teatro Campo Alegre, estamos a trabalhar de forma muito mais concentrada no tempo com estes alunos. Estamos a trabalhar com alunos da Escola Profissional de Campanhã e da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça, de diferentes turmas. Partimos dos conteúdos da peça Quinta-feira: Abracadabra e o que vamos assistir no dia 26 é o resultado desse trabalho. Aqui, na cidade do Porto, não estamos a trabalhar com estas escolas no sentido de fazermos uma peça com os alunos, mas, sim, de transmitir ferramentas das práticas artísticas contemporâneas para criarem o seu próprio objeto artístico, que será apresentado. Este é o nosso objetivo, que penso ser muito ambicioso. Vamos dar um contributo no sentido da aproximação dos alunos à escola, ao seu contexto e capacitação com, chamar-lhe-ia, ferramentas de contacto ou de ligação a muitas zonas, onde sinto que há desconexão. Sinto que podemos dar um contributo, à nossa devida escala, para que isso se efetive.
Idoia Zabaleta: Neste caso, estamos a trabalhar sobre o Quinta-feira: Abracadabra e, aqui, não são duas mulheres a evocar uma série de palavras, mas, sim, dezasseis jovens. Portanto, se as palavras evocadas pelas mulheres na peça seriam, por exemplo, “trabalho” ou “alegria”, as palavras que estes dezasseis jovens evocam são “tristeza” ou “cansaço”. Eu tenho menos experiência em trabalhar com escolas e isto é algo que me está a impactar: ver estas palavras evocadas por jovens entre os 15 e os 19 anos, trazidas como necessidade de serem ouvidos, talvez. Por outro lado, uma questão que me está a impactar é o quanto os edifícios, as instituições, os espaços onde trabalhamos configuram os corpos que, por sua vez, configuram o tipo de aprendizagem. Esta relação com o espaço, o som, o edifício, os recursos materiais é algo que me surge com muita clareza, neste projeto.
Que mundo(s) ainda falta(m) construir com Sábado e Domingo? E que pistas os livros homónimos apresentados no dia 19 de novembro, no Teatro Campo Alegre, podem fornecer nesse sentido? Porque decidiste editar a coleção de livros, Sete Anos Sete Livros, no âmbito deste projeto?
Cláudia Dias: A ideia para a criação deste projeto-satélite ao projeto-mãe, Sete Anos Sete Livros, nasceu da constatação de que os textos produzidos no contexto da dança contemporânea não são tão valorizados como os textos produzidos no contexto do teatro contemporâneo, por exemplo. E daí ter lançado este desafio ao Tiago Rodrigues, na altura diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, de fazer esta coleção. Seriam editados os textos produzidos no contexto destas cinco peças, mas acrescido de um trabalho de ilustração, por parte do António Jorge Gonçalves, para permitir que este texto não ficasse aprisionado dentro de um livro para memória futura; e também se transformasse numa outra coisa, através do diálogo com a ilustração. Editámos cinco livros — das cinco peças — e, agora, o Sábado e Domingo, são diferentes. O Sábado é um olhar sobre o projeto Sete Anos Sete Escolas. Pareceu, à equipa envolvida no projeto — desde logo, todos os formadores, mas também os sociólogos com quem trabalhamos —, que era importante parar, olhar e refletir sobre tudo o que tinha acontecido no projeto, abrindo-o de outras formas para o futuro e colocar em diálogo com outros projetos. O Domingo foi um olhar para todo o projeto, partindo das fotografias que o Karas — na sua persona Gabriel Orlando – foi tirando na nossa circulação. Foi apontando a câmara para as cidades onde apresentamos o projeto, que foram várias, e apontando, também, para as nossas relações fora do contexto dos espetáculos. A partir desse material, coligimos algumas fotografias e fizemos algum trabalho textual à volta desse material, no qual a Idoia também participou.
Idoia Zabaleta: Sim, fui convidada a participar no processo do livro Domingo, que se refere ao dia da semana de descanso, onde a produtividade fica noutro lugar, fica fora de campo. E, é como é este livro: “fora de campo”. É sobre o processo de criação de todo este projeto. Paralelamente a estas fotografias, fizemos o trabalho de escolher uma palavra que seria convocada nestas imagens e, daí, partir para um trabalho de como essa palavra tinha diferentes significados, como um jogo! Dependendo da perspetiva, o significado altera-se e produz diversos sentidos.
Cláudia Dias: Este livro também contém um texto da Catarina Pires sobre uma série de conversas que promovemos no São Luiz Teatro Municipal, no ano passado. Conversámos com pessoas de várias áreas, tais como a economia e o jornalismo, não sobre o projeto e as peças em si, mas sobre os temas e questões que as peças levantam. Portanto, tem também este “texto-chapéu” sobre as conversas referidas no São Luiz.
Sete Anos Sete Peças, todas elas atravessadas por uma urgência de construção de coletivos. Podemos considerar o projeto como uma metáfora à própria construção da democracia?
Cláudia Dias: Este projeto, Sete Anos Sete Peças, foi pensado muito nessa perspetiva de encontrar e de construir coletivo. Todos os meus trabalhos anteriores eram trabalhos no formato a solo, uma vez que estava também numa fase de descoberta do meu próprio universo. De facto, com este projeto, inauguro um salto nessa direção de construção de coletivo e também na relação com o contexto social, político e económico do país, uma vez que falamos de 2016 até agora. Se olharmos para trás, estamos a falar de anos atravessados por uma crise não apenas económica, mas também política e social, onde as questões ligadas à democracia — e eu diria, talvez, aquelas menos evidentes — estavam presentes. Eu senti essa necessidade, enquanto artista, de fazer o meu statement relativamente a isso. Uma dessas questões mais invisíveis era a narrativa de então sobre a inexistência de futuro. Os nossos líderes políticos falavam desta inexistência de futuro e de alternativa. Eu achei essa narrativa muito violenta para se ter com as pessoas e quis, realmente, construir um projeto que comunicasse o oposto; que comunicasse esta possibilidade de que os futuros estão sempre à nossa mão e nós temos sempre o poder de os construir. Somos, nós, os construtores do futuro. Não precisamos de ter alguém que nos diga como vamos construir o nosso futuro. Portanto, é um projeto artístico, obviamente, mas muito impregnado nessa força de construção de coletivos, de construção de relações democráticas, mas, sobretudo, de construção de futuro.
De que forma o processo criativo se relaciona com essa urgência e com a prática democrática, nomeadamente, no diálogo com diferentes linguagens artísticas e diferentes artistas? Como dialogam a Cláudia-artista e a Cláudia-cidadã?
Cláudia Dias: Este projeto foi também pensado com uma direção específica: sair de mim e ir na direção do outro – o encontro com o outro. Todo o dispositivo das peças parte de um dispositivo de espera, onde duas pessoas se encontram frente a frente, pela primeira vez. Alguém faz um gesto e, a partir daí, inaugura-se todo um processo de criação. Eu acho que este é um gesto democrático: ter duas pessoas, frente-a-frente, de forma paritária, e partir do que cada uma traz, sem relação hierárquica do criador-cocriador ou criador-intérprete. Um dispositivo igualitário, se assim quiserem. A peça resulta do que acontecer nesse primeiro encontro. Este desejo de ir ao encontro do outro resultou em ir ao encontro de muitos outros. Alguns com quem já tinha relações de cumplicidade, nomeadamente a Idoia Zabaleta, com quem já tinha trabalhado noutros projetos. A Idoia convidou-me para lecionar alguns workshops no País Basco e fizemos ainda um projeto grande na área da criação artística, via workshop, nesta parte esquinada da península. Outros presentes são, por exemplo, o Jaime Neves, que vem da área do muay thai, foi uma descoberta interessante, visto ser alguém que vem de fora do meio artístico; o Igor Gandra, que vem de outro território mais ligado ao teatro de objetos e de marionetas, também, um desejo antigo; o Luca Bellezze, que vem da área do clown e da prática teatral de rua, ou seja, um mundo completamente diferente do meu; e outros, tais como o António Jorge Gonçalves, que teve um papel importante no projeto Sete Anos Sete Livros, e também Vasco Vaz e Miguel Pedro, que vêm da música e integraram a última peça, Sexta-feira: o fim do mundo... ou então não.
Idoia Zabaleta: Tenho o prazer de participar neste projeto fascinante, acompanhando a Cláudia no Quinta-feira: Abracadabra. Calhou-me a quinta-feira, esse dia da semana que é bastante alegre porque já é quase fim de semana [risos]. Estreamos esta peça em 2019, no País Basco, e em 2020 foi apresentada em Portugal. Abracadabra faz referência à palavra que tem a capacidade de convocar ação e potência. A peça é sobre isso: duas mulheres que contam histórias. Era uma vez uma mulher que se encontra com outra mulher e lhe diz: “dá-me algo”, e a outra responde: “toma tudo”. É uma peça que conta contos. Convoca a palavra e a capacidade que tem de mobilizar os corpos. Há uma responsabilidade que temos, todas, sobre as palavras que dizemos e colocamos nos nossos corpos.
Tal como disse a Cláudia, conhecemo-nos há quase uma década num workshop em Barcelona. Quando a vi trabalhar, percebi que queria trabalhar com ela num tipo de aproximação à prática artística que ela propunha com um conjunto de colegas, com os quais foi desenvolvendo uma metodologia de composição em tempo real. Soube, claramente, que queria trabalhar com ela no País Basco para que compartilhasse nesse contexto, onde trabalho, essa aproximação à prática artística no sentido de fomentar e gerar ideias no tecido [artístico local]. Partindo de uma possibilidade de prática coletiva, trabalharmos juntas, sermos capazes de trabalhar juntas, através de um não-estar necessariamente de acordo; do dissenso; de um posicionamento crítico e autocrítico; e, ainda, de uma posição de distância.
A Cláudia e os seus colegas desenvolveram essa metodologia, um sistema muito claro de trabalhar a partir desta posição de distância, mesmo sem estar completamente de acordo sobre o que estava a ser defendido, sobre a operação dos materiais com que estavam a trabalhar, mas que, ainda assim, produzia sentido.
Esta questão interessou-me, em particular, e a partir daí, começamos a nossa relação, através dessa metodologia de trabalho. E, bem, devo dizer que [a Cláudia] é uma pessoa com quem aprendi muito no que diz respeito ao rigor da prática artística, num entendimento de que são os materiais, as coisas que estão a ser produzidas, que têm um potencial de ação e de convocar o sentido, mais do que aquilo possa ou não interessar a cada uma.
No Quinta-feira: Abracadabra, isso concretiza-se, de alguma maneira, na relação entre nós e com o resto da equipa. Há mais pessoas, nunca estivemos sozinhas. Foi muito bonito de ver que, apesar de uma capacidade de leitura muito similar das coisas, isso concretiza-se na diferença, bastante óbvia, entre essas duas mulheres, na diferença de histórias que as atravessa, mas que são capazes de produzir sentido apesar de/partindo dessa diferença.
No dia 26 de novembro, apresentar-se-á o resultado do projeto Sete Anos Sete Escolas desenvolvido com estudantes de duas escolas profissionais do Porto. Podem partilhar connosco como tem sido esse trabalho, de forma coletiva? Sentem que tem contribuído para uma capacitação, uma emancipação, até, do grupo, enquanto cidadãos e cidadãs?
Cláudia Dias: O projeto Sete Anos Sete Escolas tem sido desenvolvido desde o fim de 2016. Nos dois primeiros anos, o projeto aconteceu apenas na cidade de Almada, em escolas públicas. A partir de 2018, começou a ser implementado na cidade do Porto. É um projeto que visa a capacitação de alunos das escolas públicas — sejam profissionais, de ensino regular ou de outros formatos — via práticas artísticas. Não estamos na escola para formar artistas, não é esse o nosso objetivo. O nosso objetivo é trabalhar com estes jovens no sentido da sua capacitação enquanto cidadãos e cidadãs com pensamento critico, conscientes, alerta, capazes de descodificar e ler as diversas mensagens do dia a dia e dos vários meios de comunicação existentes. Que se constituam, eles próprios, defensores da democracia, no sentido de perceberem qual o sistema democrático, a importância da sua participação e o risco da sua demissão, sobretudo no contexto mundial que estamos a viver, em que os neofascismos estão, novamente, a bater-nos à porta. Este é o grande objetivo.
No contexto do ciclo, que agora apresentamos no Teatro Campo Alegre, estamos a trabalhar de forma muito mais concentrada no tempo com estes alunos. Estamos a trabalhar com alunos da Escola Profissional de Campanhã e da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça, de diferentes turmas. Partimos dos conteúdos da peça Quinta-feira: Abracadabra e o que vamos assistir no dia 26 é o resultado desse trabalho. Aqui, na cidade do Porto, não estamos a trabalhar com estas escolas no sentido de fazermos uma peça com os alunos, mas, sim, de transmitir ferramentas das práticas artísticas contemporâneas para criarem o seu próprio objeto artístico, que será apresentado. Este é o nosso objetivo, que penso ser muito ambicioso. Vamos dar um contributo no sentido da aproximação dos alunos à escola, ao seu contexto e capacitação com, chamar-lhe-ia, ferramentas de contacto ou de ligação a muitas zonas, onde sinto que há desconexão. Sinto que podemos dar um contributo, à nossa devida escala, para que isso se efetive.
Idoia Zabaleta: Neste caso, estamos a trabalhar sobre o Quinta-feira: Abracadabra e, aqui, não são duas mulheres a evocar uma série de palavras, mas, sim, dezasseis jovens. Portanto, se as palavras evocadas pelas mulheres na peça seriam, por exemplo, “trabalho” ou “alegria”, as palavras que estes dezasseis jovens evocam são “tristeza” ou “cansaço”. Eu tenho menos experiência em trabalhar com escolas e isto é algo que me está a impactar: ver estas palavras evocadas por jovens entre os 15 e os 19 anos, trazidas como necessidade de serem ouvidos, talvez. Por outro lado, uma questão que me está a impactar é o quanto os edifícios, as instituições, os espaços onde trabalhamos configuram os corpos que, por sua vez, configuram o tipo de aprendizagem. Esta relação com o espaço, o som, o edifício, os recursos materiais é algo que me surge com muita clareza, neste projeto.
Que mundo(s) ainda falta(m) construir com Sábado e Domingo? E que pistas os livros homónimos apresentados no dia 19 de novembro, no Teatro Campo Alegre, podem fornecer nesse sentido? Porque decidiste editar a coleção de livros, Sete Anos Sete Livros, no âmbito deste projeto?
Cláudia Dias: A ideia para a criação deste projeto-satélite ao projeto-mãe, Sete Anos Sete Livros, nasceu da constatação de que os textos produzidos no contexto da dança contemporânea não são tão valorizados como os textos produzidos no contexto do teatro contemporâneo, por exemplo. E daí ter lançado este desafio ao Tiago Rodrigues, na altura diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, de fazer esta coleção. Seriam editados os textos produzidos no contexto destas cinco peças, mas acrescido de um trabalho de ilustração, por parte do António Jorge Gonçalves, para permitir que este texto não ficasse aprisionado dentro de um livro para memória futura; e também se transformasse numa outra coisa, através do diálogo com a ilustração. Editámos cinco livros — das cinco peças — e, agora, o Sábado e Domingo, são diferentes. O Sábado é um olhar sobre o projeto Sete Anos Sete Escolas. Pareceu, à equipa envolvida no projeto — desde logo, todos os formadores, mas também os sociólogos com quem trabalhamos —, que era importante parar, olhar e refletir sobre tudo o que tinha acontecido no projeto, abrindo-o de outras formas para o futuro e colocar em diálogo com outros projetos. O Domingo foi um olhar para todo o projeto, partindo das fotografias que o Karas — na sua persona Gabriel Orlando – foi tirando na nossa circulação. Foi apontando a câmara para as cidades onde apresentamos o projeto, que foram várias, e apontando, também, para as nossas relações fora do contexto dos espetáculos. A partir desse material, coligimos algumas fotografias e fizemos algum trabalho textual à volta desse material, no qual a Idoia também participou.
Idoia Zabaleta: Sim, fui convidada a participar no processo do livro Domingo, que se refere ao dia da semana de descanso, onde a produtividade fica noutro lugar, fica fora de campo. E, é como é este livro: “fora de campo”. É sobre o processo de criação de todo este projeto. Paralelamente a estas fotografias, fizemos o trabalho de escolher uma palavra que seria convocada nestas imagens e, daí, partir para um trabalho de como essa palavra tinha diferentes significados, como um jogo! Dependendo da perspetiva, o significado altera-se e produz diversos sentidos.
Cláudia Dias: Este livro também contém um texto da Catarina Pires sobre uma série de conversas que promovemos no São Luiz Teatro Municipal, no ano passado. Conversámos com pessoas de várias áreas, tais como a economia e o jornalismo, não sobre o projeto e as peças em si, mas sobre os temas e questões que as peças levantam. Portanto, tem também este “texto-chapéu” sobre as conversas referidas no São Luiz.