Saltar para conteudo

Retratos

Joana von Mayer Trindade & Hugo Calhim Cristóvão / NuIsIs ZoBoP

Maio

2022

Qua
18
Sobre Portrait of a Dancer as Velvet

Podemos olhar para o vosso espetáculo como um trabalho autobiográfico? De que forma? O que creem que este espetáculo pode revelar sobre vocês e o vosso universo, enquanto artistas?

“Jadis, si je me souviens bien, ma vie était un festin où s'ouvraient tous les cœurs, où tous les vins coulaient.” Existe a doença e existe o esconder a doença. A primeira é um Real a lidar, um modo de existir do humano. A segunda procria subterraneamente o monstruoso. É uma escolha ética. Não porque a doença é, mas porque a doença é escondida. No covil, dança coreografias de perpétua miséria. “Il faut être absolument moderne”. Difícil assim julgar da insanidade de se ser retratado. Sinais confusos emergem destas vidas que olham petrificadas. Obcecadas por desordem narcísica, obcecadas por compulsão controladora de permanecerem vistas quando já não se vêem. Sufocando no reforço do olhar futuro para existirem no agora. “Je n'ai jamais été de ce peuple-ci; je n'ai jamais été chrétien, je suis de la race qui chantait dans le supplice.”

Durante o vosso processo de criação, inspiraram-se em algum trabalho autobiográfico ou autorretrato?

Difícil assim prever se é o Retrato que distorce em doença o que está vivo ou se é a doença que constrange o que está vivo a um Retrato. Em seguida, é previsível. Movimento de encarcerar e enquadrar. Movimento dúplice, de se ser uma forma restrita que se restringe estritamente a uma forma. Uma aparência de dança presa em circunvoluções cerradas. Esgar de superfície, máscara de que não se consegue escapar, maquinal, enterrada em réguas e regras, ritos de espontaneidade assassinada que contaminam mesmo os próprios momentos em que a forma deveria retroceder e ceder, soçobrar. “La vraie vie est absente. Nous ne sommes pas au monde.” Não espanta assim que o Real do Bailarino como Retrato seja a insanidade. Uma cobardia insana que persegue a pacificação no morto, retratar de formas mortas. Ou no morto retratar de que não deseja ser uma forma morta, demonstrando o oposto do desejo. Criaturas imersas em doença e pequenos limites, assim treinadas e construídas. Desesperadas por segurança conforme, perfeição conforme, reforço conforme. A assassinar o que está vivo. “Voici le temps des assassins.” Sucessão de retratos bem executados, ou tentativas não sucedidas de escapar ao retrato, em falsa desenvoltura de cadáver. Como quem se quer afogar, mas não se afoga.

Num confronto entre retrato e realidade, de que lado, a quem serve e como, ou para quê, pode servir a destruição?

“L'amour est à réinventer.” Conseguiremos a lida de reverter e inverter, de retratar a destruição do Retrato ? De eliminar as nobrezas e burguesias desaparecidas, vestidas de púrpuras e veludos, que o Retrato nasce para servir? No fim de contas, é apenas um corpo ou rosto morto. Uma casca, um autómato. Movido se e somente se o espelho ou os olhos sobre ele incidem. Desta maneira, a dança não o arrebentará nunca para longe. (Interlúdio : “Fake it until you make it”, a maior insanidade já escrita e a própria doença a esconder-se). Quem sabe se conseguimos que a dança o estilhace para perto? Mesmo que apenas para muito perto? “L'ivresse, c'est le dérèglement de tous les sens.” Pode o Retrato queimado, retalhado, seduzido por si como Narciso, experienciar em um momento a sua própria dissolução? Afogar-se nas águas? Se em espirais, em rondas de ressonância por cima de rondas de ressonância, se por um momento, o que não é Retrato conseguir destruir um ínfimo do Retrato, pode acontecer que as raízes do retrato soçobrem um ínfimo. “Oh ! nos os sont revêtus d'un nouveau corps amoureux.”

Pode o retrato abandonar o “veludo” e a “púrpura”? Deve? De que se vestiria o retrato? E quem dança?

Semeando e seguindo os rostos do Bailarino que já o eram antes do Retrato da face o ser. Semeando e seguindo o mover-se que já o era antes do Retrato do Bailarino ser martelado como Veludo. Aveludado e Restrito. “Je est un autre.” Assim, a insanidade, a doença, a compulsão, a obsessão de se ser retratado, podem lavrar o seu próprio epitáfio. Por um Bailarino ou uma Bailarina que a dance para longe dos Retratos dos Bailarinos como Veludo. “On ne part pas. - Reprenons les chemins d'ici.” Assim, o paradoxo que perseguimos nesta criação – o que é um Bailarino que tem de dançar tudo o que não se dança a si mesmo, enquanto se dança a si mesmo. “J'ai tendu des cordes de clocher à clocher ; des guirlandes de fenêtre à fenêtre, et je danse".

Citações: Jean Arthur Rimbaud

© DR

Subscrevam a nossa newsletter e recebam todas as novidades sobre o TMP.

close