Retratos
Susana Chiocca
Setembro
2021
Ter
14
Sobre BITCHO — às escâncaras
Podemos olhar para o teu espetáculo como um trabalho autobiográfico? De que forma? O que crês que este espetáculo pode revelar sobre ti, enquanto criadora?
Nesta peça, estão reunidas várias experiências e explorações que fui fazendo ao longo dos últimos anos — na realidade, mais de duas décadas —, entre as artes plásticas, o vídeo, a fotografia, o movimento, a performance, o spoken word, a instalação e o som. (..) Há uns anos, um amigo colocou-me uma questão: até que ponto a Susana Chiocca é BITCHO ou o BITCHO é mais Susana Chiocca? Penso que se complementam e aprendem um com o outro. Vejo o BITCHO como um alter ego, ao qual de alguma forma tudo é permitido, uma personagem que revela bastante da Chiocca e que a extrapola. Falo do que me importa, do que me rodeia, mas são questões universais, gritos cósmicos, dores e prazeres globais. Percebermo-nos com e através do outro, por isso, interessa-me saber o que pensa quem vem experienciar um trabalho meu, porque me abre a outras perspetivas — como quem lê um livro, não há duas experiências iguais.
Durante o teu processo de criação, partiste ou inspiraste-te em algum trabalho autobiográfico, autorretrato ou outro tipo de referência?
As referências que tenho são de várias áreas e que vou absorvendo ao longo da vida. Muitas não são evidentes ou explícitas. Há 20 anos fui muito influenciada pela dança — Alain Platel, Vera Mantero, João Fiadeiro, Jérôme Bel, Xavier Le Roy, Miguel Pereira, Jan Fabre, entre muitos outros — e a Pina Bausch, é claro. Para além dessa base, os futuristas e os dadaístas, artistas como Bill Viola ou Caravaggio, Chris Cunningham, Bosch ou Bruegel. No cinema, outros mil, como Maya Deren, Jonas Mekas, Derek Jarman, Edgar Pêra, David Lynch, Jodorowsky, Sergei Parajanov, ou a escola soviética — Eisenstein, Tarkovsky e Sokurov — não esquecendo o Almodóvar, porque o BITCHO também pode roçar o kitsch.
O mais fácil será referir os criadores na área da música, também faltará uma infinidade deles, mas para mencionar aqueles que são mais BITCHO, mais nonsense e voz: o António Variações, que ainda me lembro de ver na televisão; o Ney Matogrosso, em especial com o grupo Secos & Molhados; Adolfo Luxúria Canibal; o Tom Zé; a Lola Flores; a Fátima Miranda; a Elza Soares; a Ana Deus; o António Olaio; a Amália! O concerto do álbum, ISAM, do Amon Tobin, por exemplo, mudou a minha perspetiva em relação ao mapping que, até então, não achava de todo pertinente. Este concerto deu-me algumas ideias para o BITCHO, que na época, em Portugal, não eram concretizáveis, pelo menos, com os meios de que dispunha.
E é claro, a poesia — Cesariny, Lapa, Pessoa, Herberto Helder, Al Berto, Regina Guimarães, Heiner Muller — e as dificuldades com que te deparas com a sua interpretação. O Cesariny, para mim, tem uma cadência natural, enquanto o Herberto Helder é muito mais complicado de apreender, com o seu ritmo próprio, ou era. Ainda, outros textos menos poéticos, como o tema Cuant, que dá título ao segundo EP, traduzido para catalão, do filósofo Tobias Hering. Há outros poetas que me influenciam e que nunca trabalhei como a Ana Hatherly, o Ernesto Melo e Castro, a Adília Lopes…
Uma festividade fundamental para o BITCHO é o Carnaval. É um acontecimento que me está impresso desde que me lembro de mim, essa possibilidade múltipla de outros seres ou de, como costumo dizer, de sermos mais nós próprios. Se calhar o BITCHO é mais Susana Chiocca do que ela própria. Os caretos, sobretudo os de Lazarim, são fabulosos, todos diferentes com figurinos igualmente singulares. Lembro-me de que, no ano em que fui, ter descoberto um careto com uma pequena parte do seu figurino com o mesmo tecido que eu ia usar no meu próximo concerto e achei que não era coincidência — fiquei em delírio!
É importante não esquecer o Martin Margiela, Alexander McQueen, Vivienne Westwood e as queridíssimas drag queens, como a Lorelay Fox e a Rita von Hunty.
Por fim, como não falar da cumplicidade criativa, de visão e de crítica com o António Lago e muitos outros pares com quem cresci e dos quais destaco a Ana Ulisses, com quem comecei o projeto anterior ao BITCHO, as Balla Prop.
Este trabalho é uma vida, da qual se vislumbra um pequeno brilho, não como uma sobra, mas como algo que se herda, se vai destacando dessa amálgama submergida do caminho, do conhecimento e dos encontros.
Há algum retrato ou autorretrato que te inspire?
Um dos últimos autorretratos de que me lembro é o da Aurélia de Sousa representada como Santo António, e o pormenor de termos acesso à fotografia. Quando o vi, apeteceu-me logo fazer um trabalho performativo, mas ainda não aconteceu.
Já falei do Bill Viola, mas ver ao vivo trabalhos como Tristan’s Ascension ou Inverted Birth, entre outros, é algo que nos fica na memória, na pele, para sempre, pela densidade, imensidão e imersão conseguida; é uma obra maior que nos faz ascender para além do terreno.
Algo mais próximo do grotesco, como as pinturas negras de Goya, que não me canso de as revisitar quando posso, e as máscaras intrigantes do James Ensor. Mas, como disse anteriormente, essas inspirações não são transparentes, temos a figura do fauno ou o deus Pan, metade homem, metade bode, esse carácter híbrido que está inerente ao BITCHO. Por exemplo, a primeira figura teriantrópica de que temos conhecimento, O feiticeiro, e que ao ter características humanas, integra uma série de animais, para mim, é um símbolo e uma premonição, é quase como se todos estes bitchos posteriores dos vários criadores estivessem aí contidos e o que fazemos é simplesmente desenrolar o novelo e descobrir a nossa antropomorfia específica.
No interior e no exterior de tudo, está o centro que é a natureza e a sua capacidade poética, regeneradora, muscular e inspiradora!
De que forma o ritualístico e/ou o religioso estão presentes no teu espetáculo?
Um ritual implica uma repetição de atos ou ações aos quais se dão significados específicos. Posso pensar em ritualístico transversalmente por um lado - a necessidade da Susana Chiocca se transfigurar para passar a mensagem e a experiência, tal como o xamã terá um figurino específico para aceder ao outro mundo. Posso dizer que, por vezes, neste espetáculo existem momentos em que a personagem se eleva a uma espécie de transcendência.
O que procuro com o que apresento é que o espectador não saia indiferente, nem que considere uma merda o que acabou de ver, pelo menos, sente algo, não sai igual ao que entrou. Nesse sentido, mais positiva ou negativamente, existe uma transformação, nem que seja momentânea; um ritual também terá essa característica, o poder energético de penetrar em. Numa aceção ideal, será o de provocar a quem assiste uma vontade de criar, de chegar a casa e fazer coisas. Isso é das melhores experiências que me podem acontecer quando assisto, oiço ou leio algo vibrante, a vontade de me colocar no centro de uma ação, de construir, de idealizar projetos, nem que seja simplesmente um desenho.
BITCHO – às escâncaras, mais do que um espetáculo por si só, é parte de um processo, de um projeto que surge em 2012. Hoje, em 2021, o que é o BITCHO? O que tem de distinto e de comum com os primeiros anos do projeto?
Nos primeiros dois anos, o projeto tinha o nome de Outra coisa. O nome BITCHO surgiria posteriormente — e não deixa de ser uma outra coisa. Nunca sabemos muito bem por onde vai, nem o que virá e isso é algo que me impele a criar, a transformá-lo, a repensá-lo, criar um novo todo ou um novo bitcho. Uma das características centrais é precisamente essa transmutação. A relação do personagem com o público é pensada e altera-se consoante o espaço no qual é apresentado. Através dos textos, de hoje ou mais antigos, procuro refletir sobre a atualidade. Ambos são intrinsecamente contemporâneos - como sabemos, uma obra, quando é boa, é atemporal. Faço um jogo de costura de textos de line-ups, tiro e refranjo, como num patchwork. E é a partir desse novo núcleo de textos que ressurge, fluidamente, um novo ser que se expressará nesse outro figurino e ambiente. Por exemplo, agora retrabalhei dois textos das apresentações de 2012, feitas a partir do livro Pena Capital de Mário Cesariny, que designei de Pila e de Bomba, com uma nova roupagem musical, porque nos fazem pensar no agora e também nos transportam. Recentemente, encontrei um vídeo que fiz para o tema, O que te atravessa, de 2014, o único da minha autoria neste espetáculo, e o modo de dizer está completamente diferente. Até me assustei! Não parecia a mesma pessoa. Sinto que o texto agora é mais meu. Consegui perceber o seu ritmo. Houve um crescimento no modo do dizer.
O projeto iniciou com o músico e produtor, Sílvio Almeida, e fomos trabalhando a voz e os sons em minha casa e era eu que fazia os vídeos, figurinos e escrevia alguns dos textos. Em 2014, comecei a colaborar com o poeta Luca Argel que criava textos específicos para o projeto, mas também para outros trabalhos em vídeo, o que foi um privilégio, trabalhar com alguém que escreve belissimamente e é meu contemporâneo. Nesse mesmo ano, juntou-se a videasta Maria João Silva que trouxe novas possibilidades ao nível da imagem e da sua concretização. Os vários elementos foram-se juntando porque senti uma urgência de abrir o projeto, de não ficar só com o meu universo, receber outros inputs, outras experiências e, logicamente, o conhecimento específico de cada um na sua área de trabalho. O trabalho foi crescendo e fui de alguma forma criando abstratamente imagens daquilo que queria no futuro para o BITCHO.
Durante muito tempo o BITCHO funcionou com as músicas já pré-gravadas, sozinha em cena, começou na sala de um amigo e artista, André Fonseca, que organizou uma mostra de arte na sua casa e foi para mim um momento explosivo. Agrada-me essa proximidade com o público. Portanto, o projeto adapta-se aos diferentes espaços. No ano passado, em Salamanca, apresentei na biblioteca da Casa de las Conchas, um espaço secular que possui uma energia tão particular que parecia que estava a habitar um outro tempo. A partir de 2019, ocorreu uma grande mudança: o músico interpreta ao vivo e, por vezes, está também presente em palco.
Tem existido a colaboração fundamental de uma série de artistas e nada teria sido possível sem os diversos criadores envolvidos, desde o primeiro momento.
Este espetáculo é o culminar de um longo caminho, onde se vão ramificando e interligando diversas ideias numa procura constante de novos bitchos. Tem existido a colaboração fundamental de uma série de artistas e nada teria sido possível sem os diversos criadores envolvidos, desde o primeiro momento. O projeto não existiria só com a Susana Chiocca e, nesta fase, temos o António Lago, o Miguel Ângelo Silva, o Luís Figueiredo, a Maria João Silva e o Duarte Amorim. Colaboramos para criar um objeto coeso, personificado no BITCHO e que vai muito para além dele. Este espetáculo é o culminar de um longo caminho, no qual se vão ramificando e interligando diversas ideias numa procura constante de novos bitchos.
Podemos olhar para o teu espetáculo como um trabalho autobiográfico? De que forma? O que crês que este espetáculo pode revelar sobre ti, enquanto criadora?
Nesta peça, estão reunidas várias experiências e explorações que fui fazendo ao longo dos últimos anos — na realidade, mais de duas décadas —, entre as artes plásticas, o vídeo, a fotografia, o movimento, a performance, o spoken word, a instalação e o som. (..) Há uns anos, um amigo colocou-me uma questão: até que ponto a Susana Chiocca é BITCHO ou o BITCHO é mais Susana Chiocca? Penso que se complementam e aprendem um com o outro. Vejo o BITCHO como um alter ego, ao qual de alguma forma tudo é permitido, uma personagem que revela bastante da Chiocca e que a extrapola. Falo do que me importa, do que me rodeia, mas são questões universais, gritos cósmicos, dores e prazeres globais. Percebermo-nos com e através do outro, por isso, interessa-me saber o que pensa quem vem experienciar um trabalho meu, porque me abre a outras perspetivas — como quem lê um livro, não há duas experiências iguais.
Durante o teu processo de criação, partiste ou inspiraste-te em algum trabalho autobiográfico, autorretrato ou outro tipo de referência?
As referências que tenho são de várias áreas e que vou absorvendo ao longo da vida. Muitas não são evidentes ou explícitas. Há 20 anos fui muito influenciada pela dança — Alain Platel, Vera Mantero, João Fiadeiro, Jérôme Bel, Xavier Le Roy, Miguel Pereira, Jan Fabre, entre muitos outros — e a Pina Bausch, é claro. Para além dessa base, os futuristas e os dadaístas, artistas como Bill Viola ou Caravaggio, Chris Cunningham, Bosch ou Bruegel. No cinema, outros mil, como Maya Deren, Jonas Mekas, Derek Jarman, Edgar Pêra, David Lynch, Jodorowsky, Sergei Parajanov, ou a escola soviética — Eisenstein, Tarkovsky e Sokurov — não esquecendo o Almodóvar, porque o BITCHO também pode roçar o kitsch.
O mais fácil será referir os criadores na área da música, também faltará uma infinidade deles, mas para mencionar aqueles que são mais BITCHO, mais nonsense e voz: o António Variações, que ainda me lembro de ver na televisão; o Ney Matogrosso, em especial com o grupo Secos & Molhados; Adolfo Luxúria Canibal; o Tom Zé; a Lola Flores; a Fátima Miranda; a Elza Soares; a Ana Deus; o António Olaio; a Amália! O concerto do álbum, ISAM, do Amon Tobin, por exemplo, mudou a minha perspetiva em relação ao mapping que, até então, não achava de todo pertinente. Este concerto deu-me algumas ideias para o BITCHO, que na época, em Portugal, não eram concretizáveis, pelo menos, com os meios de que dispunha.
E é claro, a poesia — Cesariny, Lapa, Pessoa, Herberto Helder, Al Berto, Regina Guimarães, Heiner Muller — e as dificuldades com que te deparas com a sua interpretação. O Cesariny, para mim, tem uma cadência natural, enquanto o Herberto Helder é muito mais complicado de apreender, com o seu ritmo próprio, ou era. Ainda, outros textos menos poéticos, como o tema Cuant, que dá título ao segundo EP, traduzido para catalão, do filósofo Tobias Hering. Há outros poetas que me influenciam e que nunca trabalhei como a Ana Hatherly, o Ernesto Melo e Castro, a Adília Lopes…
Uma festividade fundamental para o BITCHO é o Carnaval. É um acontecimento que me está impresso desde que me lembro de mim, essa possibilidade múltipla de outros seres ou de, como costumo dizer, de sermos mais nós próprios. Se calhar o BITCHO é mais Susana Chiocca do que ela própria. Os caretos, sobretudo os de Lazarim, são fabulosos, todos diferentes com figurinos igualmente singulares. Lembro-me de que, no ano em que fui, ter descoberto um careto com uma pequena parte do seu figurino com o mesmo tecido que eu ia usar no meu próximo concerto e achei que não era coincidência — fiquei em delírio!
É importante não esquecer o Martin Margiela, Alexander McQueen, Vivienne Westwood e as queridíssimas drag queens, como a Lorelay Fox e a Rita von Hunty.
Por fim, como não falar da cumplicidade criativa, de visão e de crítica com o António Lago e muitos outros pares com quem cresci e dos quais destaco a Ana Ulisses, com quem comecei o projeto anterior ao BITCHO, as Balla Prop.
Este trabalho é uma vida, da qual se vislumbra um pequeno brilho, não como uma sobra, mas como algo que se herda, se vai destacando dessa amálgama submergida do caminho, do conhecimento e dos encontros.
Há algum retrato ou autorretrato que te inspire?
Um dos últimos autorretratos de que me lembro é o da Aurélia de Sousa representada como Santo António, e o pormenor de termos acesso à fotografia. Quando o vi, apeteceu-me logo fazer um trabalho performativo, mas ainda não aconteceu.
Já falei do Bill Viola, mas ver ao vivo trabalhos como Tristan’s Ascension ou Inverted Birth, entre outros, é algo que nos fica na memória, na pele, para sempre, pela densidade, imensidão e imersão conseguida; é uma obra maior que nos faz ascender para além do terreno.
Algo mais próximo do grotesco, como as pinturas negras de Goya, que não me canso de as revisitar quando posso, e as máscaras intrigantes do James Ensor. Mas, como disse anteriormente, essas inspirações não são transparentes, temos a figura do fauno ou o deus Pan, metade homem, metade bode, esse carácter híbrido que está inerente ao BITCHO. Por exemplo, a primeira figura teriantrópica de que temos conhecimento, O feiticeiro, e que ao ter características humanas, integra uma série de animais, para mim, é um símbolo e uma premonição, é quase como se todos estes bitchos posteriores dos vários criadores estivessem aí contidos e o que fazemos é simplesmente desenrolar o novelo e descobrir a nossa antropomorfia específica.
No interior e no exterior de tudo, está o centro que é a natureza e a sua capacidade poética, regeneradora, muscular e inspiradora!
De que forma o ritualístico e/ou o religioso estão presentes no teu espetáculo?
Um ritual implica uma repetição de atos ou ações aos quais se dão significados específicos. Posso pensar em ritualístico transversalmente por um lado - a necessidade da Susana Chiocca se transfigurar para passar a mensagem e a experiência, tal como o xamã terá um figurino específico para aceder ao outro mundo. Posso dizer que, por vezes, neste espetáculo existem momentos em que a personagem se eleva a uma espécie de transcendência.
O que procuro com o que apresento é que o espectador não saia indiferente, nem que considere uma merda o que acabou de ver, pelo menos, sente algo, não sai igual ao que entrou. Nesse sentido, mais positiva ou negativamente, existe uma transformação, nem que seja momentânea; um ritual também terá essa característica, o poder energético de penetrar em. Numa aceção ideal, será o de provocar a quem assiste uma vontade de criar, de chegar a casa e fazer coisas. Isso é das melhores experiências que me podem acontecer quando assisto, oiço ou leio algo vibrante, a vontade de me colocar no centro de uma ação, de construir, de idealizar projetos, nem que seja simplesmente um desenho.
BITCHO – às escâncaras, mais do que um espetáculo por si só, é parte de um processo, de um projeto que surge em 2012. Hoje, em 2021, o que é o BITCHO? O que tem de distinto e de comum com os primeiros anos do projeto?
Nos primeiros dois anos, o projeto tinha o nome de Outra coisa. O nome BITCHO surgiria posteriormente — e não deixa de ser uma outra coisa. Nunca sabemos muito bem por onde vai, nem o que virá e isso é algo que me impele a criar, a transformá-lo, a repensá-lo, criar um novo todo ou um novo bitcho. Uma das características centrais é precisamente essa transmutação. A relação do personagem com o público é pensada e altera-se consoante o espaço no qual é apresentado. Através dos textos, de hoje ou mais antigos, procuro refletir sobre a atualidade. Ambos são intrinsecamente contemporâneos - como sabemos, uma obra, quando é boa, é atemporal. Faço um jogo de costura de textos de line-ups, tiro e refranjo, como num patchwork. E é a partir desse novo núcleo de textos que ressurge, fluidamente, um novo ser que se expressará nesse outro figurino e ambiente. Por exemplo, agora retrabalhei dois textos das apresentações de 2012, feitas a partir do livro Pena Capital de Mário Cesariny, que designei de Pila e de Bomba, com uma nova roupagem musical, porque nos fazem pensar no agora e também nos transportam. Recentemente, encontrei um vídeo que fiz para o tema, O que te atravessa, de 2014, o único da minha autoria neste espetáculo, e o modo de dizer está completamente diferente. Até me assustei! Não parecia a mesma pessoa. Sinto que o texto agora é mais meu. Consegui perceber o seu ritmo. Houve um crescimento no modo do dizer.
O projeto iniciou com o músico e produtor, Sílvio Almeida, e fomos trabalhando a voz e os sons em minha casa e era eu que fazia os vídeos, figurinos e escrevia alguns dos textos. Em 2014, comecei a colaborar com o poeta Luca Argel que criava textos específicos para o projeto, mas também para outros trabalhos em vídeo, o que foi um privilégio, trabalhar com alguém que escreve belissimamente e é meu contemporâneo. Nesse mesmo ano, juntou-se a videasta Maria João Silva que trouxe novas possibilidades ao nível da imagem e da sua concretização. Os vários elementos foram-se juntando porque senti uma urgência de abrir o projeto, de não ficar só com o meu universo, receber outros inputs, outras experiências e, logicamente, o conhecimento específico de cada um na sua área de trabalho. O trabalho foi crescendo e fui de alguma forma criando abstratamente imagens daquilo que queria no futuro para o BITCHO.
Durante muito tempo o BITCHO funcionou com as músicas já pré-gravadas, sozinha em cena, começou na sala de um amigo e artista, André Fonseca, que organizou uma mostra de arte na sua casa e foi para mim um momento explosivo. Agrada-me essa proximidade com o público. Portanto, o projeto adapta-se aos diferentes espaços. No ano passado, em Salamanca, apresentei na biblioteca da Casa de las Conchas, um espaço secular que possui uma energia tão particular que parecia que estava a habitar um outro tempo. A partir de 2019, ocorreu uma grande mudança: o músico interpreta ao vivo e, por vezes, está também presente em palco.
Tem existido a colaboração fundamental de uma série de artistas e nada teria sido possível sem os diversos criadores envolvidos, desde o primeiro momento.
Este espetáculo é o culminar de um longo caminho, onde se vão ramificando e interligando diversas ideias numa procura constante de novos bitchos. Tem existido a colaboração fundamental de uma série de artistas e nada teria sido possível sem os diversos criadores envolvidos, desde o primeiro momento. O projeto não existiria só com a Susana Chiocca e, nesta fase, temos o António Lago, o Miguel Ângelo Silva, o Luís Figueiredo, a Maria João Silva e o Duarte Amorim. Colaboramos para criar um objeto coeso, personificado no BITCHO e que vai muito para além dele. Este espetáculo é o culminar de um longo caminho, no qual se vão ramificando e interligando diversas ideias numa procura constante de novos bitchos.