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Retratos

Teresa Coutinho

Fevereiro

2022

Qui
3
Sobre SOLO

Podemos olhar para o teu espetáculo como um trabalho autobiográfico? De que forma? O que crês que este espetáculo pode revelar sobre ti, enquanto criadora?

Este espetáculo é o resultado, inevitavelmente, do meu percurso como criadora até agora. Nele, encontram-se reminiscências muito claras de O Distante, O Eterno Debate, o Ways of Looking, espetáculos em que, de uma forma ou de outra, me interessou pensar a manipulação do espectador, o lugar da Mulher na sociedade, a preponderância que o poder tem nas relações entre as pessoas.
Quando fiz O Eterno Debate, um espetáculo que se debruça muito claramente sobre o sexismo e sobre modos de estar que internalizamos e que nos habituamos a ver em televisão, quis que o espetáculo dissesse aquilo que eu queria dizer, sem ser moralista. Este é, contudo, um objeto muitíssimo mais distante de mim, por mais que lá esteja aquilo em que acredito. Queria que falasse sobre estas questões, mas que tivesse humor. Quando fiz o Ways of Looking, pensei muito, por estar a trabalhar a partir da obra de John Berger e do seu Ways of Seeing, na manipulação do espectador e na forma como o aparecimento da câmara de filmar mudou, para sempre, a maneira como vemos uma obra de arte. À medida que fui criando, também como atriz, que me fui confrontando com o trabalho de outros criadores, fui-me dando conta: ainda não disse aquilo que queria dizer. Acho que isto é uma fronteira muito difícil e ténue. Até que ponto é que se pode ir? É quando decido fazer o SOLO, a partir da obra de Laura Mulvey e da sua análise da representação da Mulher no cinema, que me dou conta que não seria honesto não pôr a minha experiência no palco, não falar sobre estas questões de um ponto de vista mais pessoal.
Nesse sentido, o texto caminhou, sem sombra de dúvida, para um registo autobiográfico e, inevitavelmente, passou a dizer respeito a muitas outras coisas – nomeadamente, o silêncio que se herda na família, a educação pelo silenciamento, muito presente na maneira como as nossas avós, as nossas mães viveram as suas vidas. O espetáculo é, sim, um trabalho autobiográfico, que idealmente nunca perde de vista a ideia de "quanto mais pessoal, mais universal".

Durante o teu processo de criação, inspiraste-te em algum trabalho autobiográfico ou autorretrato?

Não posso dizer que me tenha inspirado diretamente, embora sejamos, como sabemos, uma amálgama de influências e encontros que, em nós, têm um alcance que nem sempre suspeitamos. Trabalhos como o da Sophie Calle, por exemplo, foram fundadores na minha vida.

Este trabalho procura retratar a evolução da tua perceção do “feminino” a partir do teu contacto com a arte ao longo da tua vida. Nesse sentido, que ideia(s) de “feminino” procuras construir e/ou desconstruir com esta peça?

Antes de mais, é importante dizer que as palavras "Mulher" ou "Feminino" são, em si, uma construção que está a ser - e felizmente - cada vez mais desafiada. São palavras, hoje, mais amplas e é desejável que assim continue, doa a quem doer. As ideias de "beleza" e de "elegância" também são aqui objeto de análise e desconstrução. Há uma ironia com que se fala destes conceitos, no espetáculo. Talvez valha a pena responder com o espetáculo, com o texto, em que se diz a dada altura: "Abolir a linguagem. Refazer a linguagem. Um espelho que refletisse o lado de dentro."

Que rosto(s) podemos ver evocados, espelhados ou mesmo impelidos em SOLO? Que rosto(s) não podemos ver? Haverá algum/alguns?

O meu rosto e o da Lúcia são vistos sem intermediários, através do olhar da câmara. A Mariana só se torna visível já o espetáculo vai avançado, no entanto, o seu olhar é presente desde o início. Temos acesso ao seu olhar, mas não ao seu rosto. Sendo um espetáculo que é, também, sobre herança e silêncio, a minha Avó e a minha Mãe são evocadas. São também protegidas dentro do possível, mas os seus rostos são vistos, estão lá. O que existe de biográfico cruza-se com ficção, não interessa muito o que é que é realmente verdade ou não. No teatro, é justamente essa alternativa à nossa realidade, a possibilidade de criar uma alternativa à vida, que me interessa. Um lugar onde, nem que por breves instantes, possamos por exemplo abolir uma ditadura ou resgatar quem já nos morreu.

© José Caldeira / TMP

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