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Entrevista

Marcelo Evelin

Junho

2022

Qui
2
A palavra uirapuru sobrevoa esta criação: é o nome de um pássaro que habita as florestas brasileiras, é uma lenda indígena, é o próprio título da peça – que é apresentada, nos dias 3 e 4 de junho, no Teatro Campo Alegre. Como é que abordaram esta multiplicidade da palavra ao longo do processo de pesquisa?

O uirapuru é como palavra e como pássaro... A ideia do pássaro virou quase um ícone cultural brasileiro. No Brasil, a gente usa (e fora do Brasil ainda mais) para identificar uma exuberância, um tipo de brasilidade. Fiquei feliz por chamar a peça de Uirapuru porque o uirapuru é uma palavra que vem do Tupi-Guarani [família linguística que engloba várias línguas indígenas]. Gostei de não ter um título em inglês (como é habitual na dança contemporânea), mas em Tupi-Guarani – que é uma língua pouco falada, mas que existe. No Brasil, hoje em dia, há 186 línguas e existem mais de 300 etnias indígenas. Existem 186 línguas e a gente concentra-se em falar em inglês e francês.
O projeto começou por chamar-se Povo da Mata e aí eu queria falar da mata... Não só do aspeto ecológico da floresta brasileira, não só da Amazónia, mas sobre tudo o que habita as matas, todo o tipo de conhecimento, qualidade subjetiva e poética que existe na mata brasileira. Ela é densa, a gente não conhece. E, para mim, na verdade, é isso que me interessa: tocar uma coisa que não conheço. Quando resolvo fazer uma peça, não faço uma peça sobre o que eu sei, faço sempre uma peça sobre o que eu não sei.
O uirapuru vem de uma lenda, de um amor impossível. Dois amantes apaixonaram-se e não podiam estar juntos. E o guerreiro morreu de tristeza. Fiquei muito tocado com a ideia de alguém morrer de tristeza por não conseguir um amor. Essa noção de amor impossível toca-me muito, porque parece que está cada vez mais impossível a gente amar-se. Está cada vez mais difícil a gente confiar para se entregar. Porque, para mim, o amor é sobre entrega total, selvagem, passional. Esse guerreiro morreu de amor e foi transformado num pássaro por Tupã (Deus do Brasil). Esse pássaro passou a cantar para essa mulher para o resto da vida e a encantar todo o mundo. Eu gosto muito dessa ideia... Não sei se é um presente ou uma tortura para essa índia. Porque, na verdade, ela está o tempo inteiro a ouvir esse pássaro, e a lembrar esse amor que não pôde ter.
O uirapuru é um pássaro que está em extinção no Brasil – como quase todo o povo brasileiro. Podemos, praticamente, considerar que estamos em extinção... No sentido em que estamos a viver uma espécie de ditadura de indiferença, de desprezo. Desprezo sobre tudo o que é nosso, por tudo o que é genuinamente nosso, por tudo o surge da nossa brasilidade. Gosto muito de pensar – apoiado até no que diz o Luiz Antônio Simas – que não podemos mais dizer que a gente é o Brasil. A gente tem que apoiar-se é na ideia de brasilidade. Porque a única coisa que escapa a esse governo é a nossa brasilidade, uma profusão de imagens, os gestos da nossa cultura. O Brasil está transformado em não sei bem no quê, numa coisa muito longe do que é...
O uirapuru é um pássaro raro. Gosto da ideia de que é um pássaro que quase não aparece, que é um pássaro que pede a quem o escuta um certo tipo de concentração. E aí, começo a pensar numa coreografia para ouvir, uma preparação para se ouvir alguma coisa. Não alguma coisa que trago em palco, mas sim alguma coisa que está no mundo e que parece que a gente não tem tempo mais para ouvir, que a gente está muito preocupada com os nossos telefones, o nosso Whatsapp, o nosso Instagram. E, então, não dá nem para escutar mais nada, porque já está tudo dado. Para mim, o uirapuru junta todas estas coisas.
E foi também por causa da ideia de Povo da Mata, que abandonei esse título, porque é muito complicada essa ideia de identidade. Apesar de ser importante pensar e abordar a ideia de identidade no mundo (principalmente, as identidades invisíveis), interessa-me muito mais as diferenças e como é que a gente vai negociar essas diferenças. Para mim, o facto de as invisibilidades tornarem-se visíveis, não quer dizer, necessariamente, que as visibilidades têm que tornar-se invisíveis. Não é uma inversão de valor... É uma coisa que gostaria que a gente considerasse: que viesse à tona o que está invisível, suprimido e reprimido, não reprimindo, necessariamente, nada. A gente ficou nesse impasse com a ideia de Povo da Mata. Eu não sinto, por exemplo, que possa falar dos indígenas brasileiros... Não só dos indígenas, mas também do candomblé. A religião afro-brasileira é cheia de identidades que habitam as matas... Os cablocos, que são entidades importantíssimas no ritual e para a nossa compreensão do que é o mundo. O bumba meu boi, por exemplo, que é a manifestação folclórica mais presente no meu estado no Brasil, e que acontece na mata. É a história de um boi encantando que fugiu para a mata... E aí têm que ser convocadas uma série de pessoas (guerreiros, índios, todas as pessoas) para encontrar esse boi encantado.
O uirapuru também tem essa questão do encantatório. Hoje em dia, uma pena do uirapuru é muito cara e já está no mercado negro. Tem uma qualidade de presságio, de trazer boa sorte. Dizem que quem vê um uirapuru cantar tem todas as possibilidades na vida. Então, tem essa qualidade encantatória, imaginativa, que para mim era muito importante neste projeto (e ainda é). Tentar aceder a alguma coisa que esteja na imaginação. E o bonito da imaginação é a não certeza. Estou muito mais focado nas não certezas do que nas certezas. A gente está acostumada a ter que ter certezas de coisas, a ter que afirmar coisas que a gente sabe. Estou muito mais interessado em afirmar o que eu não sei, do que nessa coisa ideológica de toda a gente ter que saber tudo, dominar tudo, e poder falar sobre tudo.

É feita a comparação entre a extinção do uirapuru com o atual desprezo pela brasilidade. A sinopse da peça fala-nos de “...um Brasil que apesar de destroçado ainda canta.” Esta metáfora parece carregar uma conotação política e até mesmo ativista. A peça manifesta também estes temas? Ou trata-se de um trabalho mais contemplativo, sobre libertação, sobre origens, sobre amor?

As minhas peças são sempre políticas, mas espero que elas nunca pareçam política. No sentido de propaganda, de gesto político contra ou a favor de alguma coisa. Mas acho que a dança em si é política porque o corpo é político – ainda para mais no momento em que vivemos. É sempre político. Tenho essa preocupação, é uma coisa que tenho consciência. Mas tento não trazer e explicitar isso. É uma peça política, mas não sei se é uma peça contemplativa. A palavra contemplativa soa-me muito como uma peça para relaxar, para estar bem, para alinhar os chacras. O meu trabalho nunca foi assim, não estou interessado nisso... Gosto mesmo é de dar fricção, de estar ali com as pessoas, de olhar no olho, de propor. Não quero dizer com isto que quero sempre o embate, a luta, não é isso... Adoro estar seguro, estar apaixonado, estar tranquilo com os meus. Mas a gente não está muito aí. Quando digo “um Brasil que apesar de destroçado ainda canta”, não preciso de explicar o que é o destroçado no Brasil de hoje. Qualquer pessoa que viu as notícias da semana passada (uma pessoa a ser asfixiada dentro de um carro da polícia com toda a gente a ver), sabe que não posso falar de outra coisa que não um país destroçado. Sobre cantar... Sinto que a nossa brasilidade ainda canta. É impressionante o brilho no olhar das pessoas no Brasil. É impressionante a condição de pobreza, descaso e indiferença que vivemos. Mas é impressionante ver que ainda existe amor, que ainda existe afetação de um para o outro, que ainda existem pessoas que se riem. Desde o momento em que começamos a estruturar a peça, a Fernanda Silva [intérprete] ao entrar em palco dá um sorriso.
E isso é uma coisa que não virou uma cena – onde manipulei uma intérprete para fazer isso na hora certa, porque queria chegar a um determinado ponto... Isso é genuíno dela. É uma pessoa que vem de um lugar muito precário, é uma transexual brasileira... O Brasil é o país que mata mais transexuais no mundo. A violência é aqui, não é ali. E a Fernanda é a pessoa que, durante o processo, sempre trouxe um sorriso. E isso, para mim, é muito significativo. E acho que sim, que a gente continua cantando. A gente está cantando ao estar aqui, lidando com toda uma questão burocrática (que não é a nossa), em que temos que negociar... Mas a gente continua a acreditar em alguma coisa, a gente continua podendo produzir um tipo de subjetividade que, para mim, é como cantar.
Neste processo, comecei a estudar muito os pássaros, li muitos autores, conversei com muitos ornitólogos, fiquei muito ligado, vi muita coisa... Dei-me conta que, por exemplo, existe uma autora francesa que se chama Vinciane Despert e que escreveu um livro chamado “Habiter en oiseau” (que significa habitar em pássaro). É um título muito estranho porque é “habitar em pássaro” e não “habitar num pássaro”. Fala-se que os pássaros cantam, não para defender ou marcar um território... Não têm a noção de propriedade que nós, humanos, temos. Eles são o território, o canto deles é que faz o território, é em si o território. Acho isso muito bonito porque o cantar é uma coisa que se esvai, que, se não escutarmos, nem existe. O canto só existe quando se escuta.

Depois da estreia, há uns dias, em Teresina, Uirapuru é apresentado, pela primeira vez, fora do Brasil, no Porto. Como descreves a tua relação com a cidade? São já vários os trabalhos que apresentaste no Teatro Municipal do Porto.

Para mim, é uma coincidência muito feliz. Esta peça tem tido várias coincidências... É engraçado porque a gente está a abordar este lugar encantatório, que não é, necessariamente, um lugar místico. É um lugar com outro tipo de lógica, de um outro tipo de vibração. Comecei muito a pensar como é que a gente faz vibrar... Estou muito cansado de uma certa intelectualidade, de narrativas que já dizem tudo, da modernidade, de palavras importantes e grandes que utilizamos para comunicar. Estou à procura da vibração que a gente está produzindo, como é que a gente observa e percebe essa vibração. Então, para mim, é uma coincidência. É a sexta peça que apresento no Porto. Tenho uma relação muito próxima com a cidade – é a que eu mais gosto na Europa. Não estou a dizer por estar a falar convosco... (risos) Mas, realmente, é a cidade que mais me interessa na Europa. Há uns anos, quase cheguei a mudar-me para cá... Vinha conversando com o Paulo Cunha e Silva, em fazer um projeto aqui. Mas, quando ele morreu, essa ligação ficou parada, mudou tudo. É agora uma coincidência muito feliz esta obra ser apresentada cá.

© Bea Borgers

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