Entrevista
Marco da Silva Ferreira
Outubro
2022
Ter
11
No seu novo trabalho, Marco da Silva Ferreira deambula entre o passado e o presente, o footwork e o folclore. Em C A R C A Ç A, dança-se sobre a ideia de identidade individual e comunidade, cristalização cultural e futuro. Conversamos com o coreógrafo sobre a estreia, nos dias 21 e 22 de outubro, no Teatro Rivoli.
Como surge esta ideia de “carcaça” no processo de criação da peça? Poderá estar relacionado com uma ideia de “corpo-objeto” que vai sofrendo mutações e absorvendo diferentes camadas ao longo do tempo?
“Carcaça” foi uma palavra que surgiu nos ensaios de um outro processo, e eu achei que seria uma boa metáfora, um bom adjetivo para uma criação. Sobretudo, porque a carcaça é aquela forma que fica de uma coisa que já foi viva. Portanto, tem uma relação muito direta com o passado, muito direta com uma forma sobre a qual se podem tirar muitas ilações. Quando vemos a carcaça de um dinossauro, já se consegue imaginar qual seria a sua pele. Essa informação pode estar lá ou pode ser só ficcionada. Nesta peça, eu queria trabalhar a partir do footwork. E queria cruzar um footwork — do clubbing e das danças de rua contemporâneas — que me é muito próximo, com o trabalho vertical do corpo e aquilo que dizem ser a minha herança: o folclore europeu. Com este encontro, eu procuro provocar o pensamento sobre a construção de uma identidade coletiva: “sim, nós somos isto; isto representa-nos; identificamo-nos”. C A R C A Ç A é a busca dessa forma das coisas, entre o passado e o presente.
Pensando na construção de uma identidade coletiva, que força têm estas danças de grupo neste diálogo entre diferentes gerações, entre o que ficou para trás e o que foi recuperado?
As danças que estamos a abordar em C A R C A Ç A surgiram num meio social. Portanto, elas absorvem muito do que é o contexto socioeconómico, político, étnico. Estas danças refletem a atualidade das comunidades: daquelas pessoas, dos seus desejos, dos seus medos. Supostamente, o folclore também representava esse reflexo. Eram as danças que marcavam o encontro das pessoas e que surgiam do acaso, do comum, de estarem a coagir e coabitar. Só que, a dada altura, essas danças foram tomadas por um governo autoritário, que começou a restringir e reprimir aquilo que podia ser dito, tido, vestido, cantado. Por isso, a dada altura, o folclore já não representava ninguém. Transmitia apenas uma ideia para o exterior daquilo que seria Portugal, do que seria o transmontano ou o alentejano, por exemplo. O que houve foi um processo de cristalização cultural, que não foi nada orgânico, nem real, nem construído por aquela comunidade. Havia um certo paternalismo de alguém hierarquicamente superior que dizia: “vocês são isto!” Essa cristalização fez com que se deixasse, efetivamente, de representar aquelas comunidades. O que procuro neste trabalho é provocar o encontro entre estas danças sociais contemporâneas que constroem comunidades, que definem grupos de pessoas, hoje, num determinado território; e que, na verdade, criam uma identidade coletiva. Todos nascemos num tempo e num espaço. Nunca nos conseguimos separar de uma herança, de uma carga que vem do passado, que continuamos a carregar e a ter uma responsabilidade sobre ela, sobre o que queremos preservar, sobre o que queremos transformar e até esquecer. A peça é sobre essa responsabilidade coletiva. Como é que se constrói a identidade de uma comunidade? Ela é baseada em quê? Qual a relação que esta comunidade tem com o seu passado? Que relação tem com os seus desejos de futuro? O que pretende esquecer e o que pretende reconstruir? É sobre o poder deste grupo de, agora, tomar decisões sobre o que recebe.
Trabalha com dez intérpretes e dois músicos de universos distintos. Como é que esses universos se cruzam com a presença do folclore?
Trabalhamos com um grupo muito heterogéneo, mas que já se conhecia. Os intérpretes já estavam familiarizados entre si. O trabalho em conjunto veio fortalecer laços e pontos de interesse comuns. É um elenco com idades aproximadas, com um contexto sociopolítico semelhante, que têm desejos em comum sobre quem somos hoje: nós, Portugal; nós, portugueses; nós, europeus; sobre que fronteiras são estas que se criam ou que se esbatem. Nisso, estávamos todos em sintonia; por isso, foi fácil encontrar essa sensação de comunidade dentro deste grupo. Quanto aos músicos, o Luís Pestana vem da área da música eletrónica e tem um álbum incrível intitulado Rosa Pano que serve de base para este trabalho e se apoia muito no digital, a partir de uma atmosfera tradicional. Os sintetizadores cruzam-se com as vozes humanas, e as vozes cruzam-se com gaitas de foles e com os instrumentos de sopro mais tradicionais portugueses. O João Pais Filipe tem uma qualidade percussiva que está num triângulo perfeito entre ritmos rápidos (que estão relacionados com o transe e com o techno), mas, ao mesmo tempo, um instrumento que facilmente entra num léxico de música pós-clássica americana (como Steve Reich, por exemplo) e uma percussão das fanfarras, das bandas filarmónicas que, facilmente, se conseguem extrair do kit de bateria.
Como surge esta ideia de “carcaça” no processo de criação da peça? Poderá estar relacionado com uma ideia de “corpo-objeto” que vai sofrendo mutações e absorvendo diferentes camadas ao longo do tempo?
“Carcaça” foi uma palavra que surgiu nos ensaios de um outro processo, e eu achei que seria uma boa metáfora, um bom adjetivo para uma criação. Sobretudo, porque a carcaça é aquela forma que fica de uma coisa que já foi viva. Portanto, tem uma relação muito direta com o passado, muito direta com uma forma sobre a qual se podem tirar muitas ilações. Quando vemos a carcaça de um dinossauro, já se consegue imaginar qual seria a sua pele. Essa informação pode estar lá ou pode ser só ficcionada. Nesta peça, eu queria trabalhar a partir do footwork. E queria cruzar um footwork — do clubbing e das danças de rua contemporâneas — que me é muito próximo, com o trabalho vertical do corpo e aquilo que dizem ser a minha herança: o folclore europeu. Com este encontro, eu procuro provocar o pensamento sobre a construção de uma identidade coletiva: “sim, nós somos isto; isto representa-nos; identificamo-nos”. C A R C A Ç A é a busca dessa forma das coisas, entre o passado e o presente.
Pensando na construção de uma identidade coletiva, que força têm estas danças de grupo neste diálogo entre diferentes gerações, entre o que ficou para trás e o que foi recuperado?
As danças que estamos a abordar em C A R C A Ç A surgiram num meio social. Portanto, elas absorvem muito do que é o contexto socioeconómico, político, étnico. Estas danças refletem a atualidade das comunidades: daquelas pessoas, dos seus desejos, dos seus medos. Supostamente, o folclore também representava esse reflexo. Eram as danças que marcavam o encontro das pessoas e que surgiam do acaso, do comum, de estarem a coagir e coabitar. Só que, a dada altura, essas danças foram tomadas por um governo autoritário, que começou a restringir e reprimir aquilo que podia ser dito, tido, vestido, cantado. Por isso, a dada altura, o folclore já não representava ninguém. Transmitia apenas uma ideia para o exterior daquilo que seria Portugal, do que seria o transmontano ou o alentejano, por exemplo. O que houve foi um processo de cristalização cultural, que não foi nada orgânico, nem real, nem construído por aquela comunidade. Havia um certo paternalismo de alguém hierarquicamente superior que dizia: “vocês são isto!” Essa cristalização fez com que se deixasse, efetivamente, de representar aquelas comunidades. O que procuro neste trabalho é provocar o encontro entre estas danças sociais contemporâneas que constroem comunidades, que definem grupos de pessoas, hoje, num determinado território; e que, na verdade, criam uma identidade coletiva. Todos nascemos num tempo e num espaço. Nunca nos conseguimos separar de uma herança, de uma carga que vem do passado, que continuamos a carregar e a ter uma responsabilidade sobre ela, sobre o que queremos preservar, sobre o que queremos transformar e até esquecer. A peça é sobre essa responsabilidade coletiva. Como é que se constrói a identidade de uma comunidade? Ela é baseada em quê? Qual a relação que esta comunidade tem com o seu passado? Que relação tem com os seus desejos de futuro? O que pretende esquecer e o que pretende reconstruir? É sobre o poder deste grupo de, agora, tomar decisões sobre o que recebe.
Trabalha com dez intérpretes e dois músicos de universos distintos. Como é que esses universos se cruzam com a presença do folclore?
Trabalhamos com um grupo muito heterogéneo, mas que já se conhecia. Os intérpretes já estavam familiarizados entre si. O trabalho em conjunto veio fortalecer laços e pontos de interesse comuns. É um elenco com idades aproximadas, com um contexto sociopolítico semelhante, que têm desejos em comum sobre quem somos hoje: nós, Portugal; nós, portugueses; nós, europeus; sobre que fronteiras são estas que se criam ou que se esbatem. Nisso, estávamos todos em sintonia; por isso, foi fácil encontrar essa sensação de comunidade dentro deste grupo. Quanto aos músicos, o Luís Pestana vem da área da música eletrónica e tem um álbum incrível intitulado Rosa Pano que serve de base para este trabalho e se apoia muito no digital, a partir de uma atmosfera tradicional. Os sintetizadores cruzam-se com as vozes humanas, e as vozes cruzam-se com gaitas de foles e com os instrumentos de sopro mais tradicionais portugueses. O João Pais Filipe tem uma qualidade percussiva que está num triângulo perfeito entre ritmos rápidos (que estão relacionados com o transe e com o techno), mas, ao mesmo tempo, um instrumento que facilmente entra num léxico de música pós-clássica americana (como Steve Reich, por exemplo) e uma percussão das fanfarras, das bandas filarmónicas que, facilmente, se conseguem extrair do kit de bateria.