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Entrevista

Marlene Monteiro Freitas

Setembro

2020

Qua
9
O Teatro Municipal do Porto apresenta, durante duas semanas [em outubro deste ano], um foco de programação dedicado ao teu trabalho, com a apresentação de três diferentes peças, duas delas em apresentação, pela primeira vez, no Porto, e uma reposição [Jaguar], cuja apresentação decorreu no DDD – Festival Dias da Dança, em 2016. O que representa para ti esta retrospetiva neste momento, com três projetos que perpassam diferentes influências e momentos de criação distintos ao longo deste teu percurso?

A apresentação conjunta de Guintche (2010), Jaguar (2016) e Mal – Embriaguez Divina (2020) é uma oportunidade única para pôr em evidência elementos de continuidade e de diferença que existem entre os trabalhos. Apesar do tempo que decorreu desde a criação de Guintche ou de Jaguar, estas continuam a ser peças com que me identifico profundamente, que continuo a revisitar e a atualizar, transformar, ainda que quase impercetivelmente.
De um modo geral, a minha relação com as peças não passa pela sua maior ou menor antiguidade, mas antes pela sua atualidade, ou seja, o que me interessa são as relações de intensidade, tensão, força, por vezes, misteriosas, contraintuitivas, etc. Por exemplo, as soluções figurativas dos gregos para representar os seus mitos nos vasos são para mim perfeitamente atuais, independentemente de terem sido inventadas há vinte séculos. Este é um convite – desafio a que respondemos com grande prazer.

Mal – Embriaguez Divina é um dos espetáculos em apresentação neste foco. Um espetáculo que parte da(s) ideia(s) do mal personificado em diferentes entidades e facetas, um tema que parece, de alguma forma, percorrer todo o teu trabalho. Qual o ponto de partida que tomaste para iniciar o projeto e qual o objeto final que será apresentado ao público?

Apesar de que tem sido para muitos uma evidência que eu trabalhe sobre o mal, por considerarem que este tema tem sido transversal ao trabalho, o que é curioso é que para mim tem sido uma grande revelação.
Um dia, em casa, passei os olhos pela lombada de um livro na estante, em que a palavra “mal” vigorava no título: A Literatura e o Mal, de Georges Bataille. Foi imediato, senti que a palavra condensava os vários pensamentos soltos que tinha. Assim surgiram título e tema.
O que irá ser o mal enquanto peça ainda não sei. Há ideias, nomeadamente duas importantes: a de tribuna, de onde melhor se vê (e também melhor se é visto); e de tribunal, onde se debate a justiça. São dois pontos de partida para o trabalho da equipa sendo que, no decurso dos ensaios, as peças vão reclamando a sua direção ou mesmo a sua autodeterminação. Os vários desdobramentos que vão ocorrendo ao longo do processo são o que fundamentalmente define a natureza das peças. Um elemento específico a este projeto é que integram o grupo atores do Kammerspiele de Munique, o que representa um verdadeiro novo desafio para o trabalho.
Antecede Mal, Canine Jaunâtre 3 (2018), criação para Batsheva Dance Company, de Telavive, Israel, o que constituiu uma experiência profundamente transformadora. Por um lado, pela relação intrínseca entre projeto artístico e contexto sociopolítico em que se desenvolveu. Por outro, pela brusca interrupção da sua circulação, ou seja, silenciamento, censura, bloqueio, num momento em que diversos teatros e festivais reclamavam a sua apresentação ao público. Foram poucos os que a viram. Tratou-se de um processo muito intenso e acelerado de trabalho, que foi súbita e inesperadamente interrompido, já que o interesse dos programadores foi súbito, como fechar entre paredes um cavalo selvagem e obrigá-lo a parar as pernas.
O processo de pesquisa e trabalho de criação de Canine foi acompanhado de momentos de espanto, sobressaltos, realizações absurdas e trágicas, pelo que se tornou impossível reduzir a experiência a uma única peça. E é assim que surgem Cattivo, instalação com estantes de partitura, Mal – Embriaguez Divina e (un)common ground, programação multidisciplinar que estamos a desenvolver em parceria com uma outra estrutura, curadores, artistas, conferencistas e editores, projetada para 2020-21.
Espontaneamente, a dado momento, identifiquei as realizações absurdas e trágicas com a figura do Diabo, esse ser maléfico do nosso imaginário ao qual associamos ideias como a metamorfose, aspetos moralmente e eticamente negativos, mortíferos, de doença, a que associamos ainda a fluidos do corpo como o pus e assim por diante. Uma possível personificação do mal se formava aos meus olhos, engenharia maléfica, do sujo, do erro deliberado, máquina aparentemente imune e impune com qualidades virulentas de propagação, destruição e controle, perante a qual uma grande sensação de impotência se esboçava. Esta visão é talvez o preço a pagar, uma vez feita a descida aos infernos, guiada por investigadores, artistas e historiadores. Inferno tão bem resguardado e dissimulado ao olhar de outrem. É uma visão que uma vez tida se prende ao nosso “tendão de Aquiles” e já não se solta. Daí, talvez, mal...

De alguma forma, há elementos comuns a todos os teus trabalhos, reconhecíveis para quem acompanha o teu percurso. De todos eles, quais aqueles que destacas como os mais presentes ou os que denotam um carácter mais autoral e que permitem identificar, de uma forma direta, um trabalho com a tua assinatura?

Figuras e ficção. Ou imagens e fantasia. Os elementos do trabalho encadeiam-se como se de um sonho se tratasse, estabelecendo entre si relações precisas, intensas, por vezes contraditórias, prestando-se a uma pluralidade de leituras. Na sua combinação, coabitação, interpenetração, abrem novas vias para os trabalhos ou eventualmente congestionam-nos. Por vezes, ambos os casos. Musicalidade e ritmo. Tanto a performance, o trabalho gestual, como o encadeamento das situações em cena, ou seja, as estruturas das peças, perseguem musicalidades e ritmos precisos. Na maior parte das vezes, estes definem, em parte, possíveis sentidos das peças. Diria que têm uma função dramatúrgica importante. Prazer. Em cena, o performer persegue o princípio infantil do jogo, por um lado, o de “fazer de conta” sob o olhar do público, por outro, o de descobrir as múltiplas faces da peça que ele próprio teceu e continua a tecer e que só lhe são reveladas à medida que o público projeta as suas próprias imagens ao que vê, ouve e sente.

Em reconhecimento pela tua carreira, a Bienal de Veneza, um dos eventos mais importantes no âmbito artístico a nível mundial, decidiu entregar o Leão de Prata de 2018 por forma a valorizar uma carreira dedicada às artes performativas, numa dimensão que extravasa as fronteiras geográficas e culturais. Como é receber este importante prémio e teres a Bienal de Veneza a descrever-te como alguém que tem uma “presença eletrizante”, detentora de “um poder dionisíaco”?

Foi uma grande honra receber esta distinção. O poder dionisíaco é o poder da ilusão, do mistério, do feitiço, de ver o que lá não está, sentir o que não seja palpável, de crer e de querer... Isto é tudo o que procuro quando vou ao teatro ver uma peça. É também o que procuro através do meu trabalho, enquanto processo criativo e do espetáculo. Se consigo ou não, é outra questão...
Para que haja enfeitiçamento, é necessária a suspensão da realidade, atrofiar o quotidiano com as suas regras, leis e preocupações. E só assim surge de facto uma geografia de livre circulação, um terreno sem fronteiras, espaço em que os sentidos, a emoção, a razão, o imaginário se interpenetram, muito próximo do universo do sonho.
A distinção foi uma grande surpresa, trouxe felicidade e apreensão. Felicidade, por sermos uma equipa grande de colegas, amigos e familiares que direta e indiretamente apoiam o trabalho, a celebrar. Apreensão, porque antevi que a distinção significaria uma sobrecarga de trabalho, em entrevistas e outros compromissos, mas acabou por correu tudo bem.


Entrevista realizada a 24 de março de 2020 por José Reis, coordenador de comunicação do TMP

© Nuno Ferreira Santos

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