Entrevista
Né Barros
Setembro
2021
Sex
24
Diretora artística e coreógrafa de A História do Soldado de Stravinsky/Ramuz, de Ensemble - Sociedade de Actores com Né Barros, a ser apresentado entre os dias 6 e 9 de outubro no Teatro Campo Alegre, e no dia 10 de outubro no âmbito do TMP Online.
O que podemos esperar deste encontro entre a narrativa clássica de Stravinsky e Ramuz com a linguagem contemporânea da Né? Como dialogam o passado e o presente, o clássico e o contemporâneo?
De facto, há uma questão interessante de relacionamento entre tempos, histórias e de como a dança tratou a narrativa ao longo da sua evolução. Interessou-me questionar isso. Por um lado, a minha poética pessoal não tem sido muito fundada na narrativa – embora tenha recorrido muitas vezes ao texto, inclusivamente fiz um trabalho sobre Lady MacBeth, onde a palavra estava presente ao longo de toda a peça, mas sempre com uma dramaturgia funcional ao lado coreográfico. A minha abordagem tende a remeter para um universo mais abstrato. Partimos de um texto e eu não quis que a palavra fosse um mero pretexto. Portanto, a ideia é fazer dialogar de uma forma estimulante a questão do movimento e do gesto, que se abrem a uma leitura maior, com uma história que nos dirige para uma mensagem muito bem definida e estruturada. Ainda estamos em processo de criação, mas acredito que haverá, por um lado, a componente da desconstrução e, por outro, a componente da incorporação de todos os elementos: música, movimento, texto, de forma a que não se desvirtue o sentido d’A História do Soldado. De facto, existe ali uma moral, uma mensagem – e elas também não podem ser ignoradas. Ao mesmo tempo, vivendo nós numa altura em que a dança já fez um percurso tão largo, provavelmente há um aspeto de desconstrução e de criação de meta-narrativas que me podem interessar desenvolver ao longo do processo.
Que conceitos determinaram a direção artística desta apresentação? Que novidades traz a sua abordagem?
Quando me foi proposto trabalhar sobre A História do Soldado aceitei com muito gosto. Primeiro, porque gosto muito de Stravinsky. Depois, investiguei outras versões, tentando perceber como é que se resolveram algumas questões, nomeadamente essa relação entre o movimento, a ação, a palavra e a música – ainda que estes elementos não sejam estranhos à dança em si. A dança sempre se relacionou muito com a música, de um ponto de vista histórico. É uma aliança forte, um casamento que foi variando também, com alguns criadores a preferirem, a dada altura, a ausência da música. Estou a pensar, por exemplo, em Trisha Brown, que começou por fazer um trabalho muito interessante, muitas vezes sem música, mas como ela própria dizia, a certa altura o silêncio começou a tornar-se angustiante e acabou por recorrer a grandes clássicos musicais.
Isto para dizer que, mesmo quando a música não existe, parece que há sempre este diálogo, ainda que surdo e mudo, entre o corpo e o som. Apesar desta relação entre a música e a dança – e principalmente entre Stravinsky e coreógrafos – não ser algo de estranho. Existiam várias abordagens e tive de entender como se resolviam algumas questões, principalmente do ponto de vista do enredo e da narrativa, da construção destas figuras que vão surgindo ao longo da peça. Foi interessante perceber que já existe um território, no qual vamos tentar, nós, fazer a nossa própria abordagem e continuar a descobrir mais coisas.
No seu trabalho sobre A História do Soldado, o que pesou mais: a composição musical de Stravinsky ou a escrita de Ramuz? E de que forma se complementaram na encenação?
A música tem uma força incrível. Quando peguei n’A História do Soldado, a música foi o elemento que mais me impactou. Mas a palavra também estava presente e, como disse, não me interessava que a ela fosse apenas um pretexto. Portanto, quando comecei a trabalhar mais profundamente sobre a hipótese dramatúrgica, ambas, texto e música, tiveram um peso igual. Tinham de ter, até porque a estrutura é feita de forma a existir texto, música, ação; já foram naturalmente construídas com este cruzamento e com estas camadas sempre muito presentes, ora em coexistência, ora em sequência. Senti que tinha de respeitar a obra tal como ela foi pensada.
A ideia é que a dança não seja algo anexo, que vem como uma ilustração ou que tem um papel mais figurativo da própria história. Tento contrariar isso. A questão é que temos não apenas as personagens, mas também o narrador que, no fundo, pode ser tudo: o Diabo, o soldado, pode ser a princesa, pode ser o rei... É uma “poliforma” que está encarnada numa pessoa (o narrador); o que é interessante porque pudemos pensar as personagens não de uma forma fechada. Abriu a possibilidade de multiplicar personagens, alterá-las, dar-lhes imaginários diversos. Há, de facto, essa fluidez do texto. Não precisa de estar ancorado numa personagem: o texto pode circular por todos aqueles corpos em cena.
Apesar da vontade de respeitar a obra original, houve espaço para a improvisação?
Como coreógrafa, interesso-me muito pela escrita no sentido mais amplo do termo e pela composição, mas uso a improvisação como algo fundamental para enriquecer e abrir novas possibilidades sobre o movimento.
A improvisação está presente durante o processo. A estrutura começa a estabilizar-se, começamos a evoluir na história, no espetáculo, e sinto que às vezes há a necessidade de desestabilizar essa construção para testar novas abordagens. O produto final é fruto de diversas improvisações, mas não se oferece ao público como uma improvisação em tempo real.
O tipo de abordagem que eu faço em termos de movimento – e de como eu trabalho com performers – é sempre num registo onde é possível haver a variação; de forma a que o gesto não necessite de uma geometria exata. Ele tem direções; tem a sua configuração; tem o seu percurso, mas dentro disso há um respirar – e esse respirar nunca é igual.
Que outros elementos estéticos quis explorar neste espetáculo?
Há algo interessante que esteve subjacente à construção da peça: a história do soldado num contexto de pós-guerra, empobrecido – e essa foi uma ideia que me interessou repensar.
O espetáculo tem uma certa nudez, com poucos recursos, do ponto de vista da sua própria construção, principalmente em termos cenográficos. Há esse lado de oferecer o texto, a narração, o corpo, de uma forma menos sofisticada. Isso interessou-me também como elemento de construção do trabalho.
O que podemos esperar deste encontro entre a narrativa clássica de Stravinsky e Ramuz com a linguagem contemporânea da Né? Como dialogam o passado e o presente, o clássico e o contemporâneo?
De facto, há uma questão interessante de relacionamento entre tempos, histórias e de como a dança tratou a narrativa ao longo da sua evolução. Interessou-me questionar isso. Por um lado, a minha poética pessoal não tem sido muito fundada na narrativa – embora tenha recorrido muitas vezes ao texto, inclusivamente fiz um trabalho sobre Lady MacBeth, onde a palavra estava presente ao longo de toda a peça, mas sempre com uma dramaturgia funcional ao lado coreográfico. A minha abordagem tende a remeter para um universo mais abstrato. Partimos de um texto e eu não quis que a palavra fosse um mero pretexto. Portanto, a ideia é fazer dialogar de uma forma estimulante a questão do movimento e do gesto, que se abrem a uma leitura maior, com uma história que nos dirige para uma mensagem muito bem definida e estruturada. Ainda estamos em processo de criação, mas acredito que haverá, por um lado, a componente da desconstrução e, por outro, a componente da incorporação de todos os elementos: música, movimento, texto, de forma a que não se desvirtue o sentido d’A História do Soldado. De facto, existe ali uma moral, uma mensagem – e elas também não podem ser ignoradas. Ao mesmo tempo, vivendo nós numa altura em que a dança já fez um percurso tão largo, provavelmente há um aspeto de desconstrução e de criação de meta-narrativas que me podem interessar desenvolver ao longo do processo.
Que conceitos determinaram a direção artística desta apresentação? Que novidades traz a sua abordagem?
Quando me foi proposto trabalhar sobre A História do Soldado aceitei com muito gosto. Primeiro, porque gosto muito de Stravinsky. Depois, investiguei outras versões, tentando perceber como é que se resolveram algumas questões, nomeadamente essa relação entre o movimento, a ação, a palavra e a música – ainda que estes elementos não sejam estranhos à dança em si. A dança sempre se relacionou muito com a música, de um ponto de vista histórico. É uma aliança forte, um casamento que foi variando também, com alguns criadores a preferirem, a dada altura, a ausência da música. Estou a pensar, por exemplo, em Trisha Brown, que começou por fazer um trabalho muito interessante, muitas vezes sem música, mas como ela própria dizia, a certa altura o silêncio começou a tornar-se angustiante e acabou por recorrer a grandes clássicos musicais.
Isto para dizer que, mesmo quando a música não existe, parece que há sempre este diálogo, ainda que surdo e mudo, entre o corpo e o som. Apesar desta relação entre a música e a dança – e principalmente entre Stravinsky e coreógrafos – não ser algo de estranho. Existiam várias abordagens e tive de entender como se resolviam algumas questões, principalmente do ponto de vista do enredo e da narrativa, da construção destas figuras que vão surgindo ao longo da peça. Foi interessante perceber que já existe um território, no qual vamos tentar, nós, fazer a nossa própria abordagem e continuar a descobrir mais coisas.
No seu trabalho sobre A História do Soldado, o que pesou mais: a composição musical de Stravinsky ou a escrita de Ramuz? E de que forma se complementaram na encenação?
A música tem uma força incrível. Quando peguei n’A História do Soldado, a música foi o elemento que mais me impactou. Mas a palavra também estava presente e, como disse, não me interessava que a ela fosse apenas um pretexto. Portanto, quando comecei a trabalhar mais profundamente sobre a hipótese dramatúrgica, ambas, texto e música, tiveram um peso igual. Tinham de ter, até porque a estrutura é feita de forma a existir texto, música, ação; já foram naturalmente construídas com este cruzamento e com estas camadas sempre muito presentes, ora em coexistência, ora em sequência. Senti que tinha de respeitar a obra tal como ela foi pensada.
A ideia é que a dança não seja algo anexo, que vem como uma ilustração ou que tem um papel mais figurativo da própria história. Tento contrariar isso. A questão é que temos não apenas as personagens, mas também o narrador que, no fundo, pode ser tudo: o Diabo, o soldado, pode ser a princesa, pode ser o rei... É uma “poliforma” que está encarnada numa pessoa (o narrador); o que é interessante porque pudemos pensar as personagens não de uma forma fechada. Abriu a possibilidade de multiplicar personagens, alterá-las, dar-lhes imaginários diversos. Há, de facto, essa fluidez do texto. Não precisa de estar ancorado numa personagem: o texto pode circular por todos aqueles corpos em cena.
Apesar da vontade de respeitar a obra original, houve espaço para a improvisação?
Como coreógrafa, interesso-me muito pela escrita no sentido mais amplo do termo e pela composição, mas uso a improvisação como algo fundamental para enriquecer e abrir novas possibilidades sobre o movimento.
A improvisação está presente durante o processo. A estrutura começa a estabilizar-se, começamos a evoluir na história, no espetáculo, e sinto que às vezes há a necessidade de desestabilizar essa construção para testar novas abordagens. O produto final é fruto de diversas improvisações, mas não se oferece ao público como uma improvisação em tempo real.
O tipo de abordagem que eu faço em termos de movimento – e de como eu trabalho com performers – é sempre num registo onde é possível haver a variação; de forma a que o gesto não necessite de uma geometria exata. Ele tem direções; tem a sua configuração; tem o seu percurso, mas dentro disso há um respirar – e esse respirar nunca é igual.
Que outros elementos estéticos quis explorar neste espetáculo?
Há algo interessante que esteve subjacente à construção da peça: a história do soldado num contexto de pós-guerra, empobrecido – e essa foi uma ideia que me interessou repensar.
O espetáculo tem uma certa nudez, com poucos recursos, do ponto de vista da sua própria construção, principalmente em termos cenográficos. Há esse lado de oferecer o texto, a narração, o corpo, de uma forma menos sofisticada. Isso interessou-me também como elemento de construção do trabalho.