Entrevista
Renata Portas / Público Reservado
Junho
2023
Qui
15
Não uma, mas duas estreias: de quinta-feira a domingo (15 a 18 de junho), mergulhamos no universo de Howard Barker no Teatro Campo Alegre. A Público Reservado coloca em diálogo duas peças do dramaturgo britânico: “Judite" e “Mãos Mortas". Renata Portas fala-nos sobre “BARKERX2", feito de desejo e política, poder e provocação.
A língua (presente na imagem promocional do espetáculo) pode estar na origem de todos os conflitos. E se não a tivéssemos ou usássemos?
Se não a tivéssemos? A língua, o teatro que eu faço, é um teatro da linguagem, habitado por línguas. A língua não é a razão do conflito, ou melhor, é potenciadora de interação e vai sempre causar conflito no sentido interessante da palavra. Porquê? Porque conceptualmente, e é por isso que eu digo que o meu teatro é um teatro da linguagem habitado por línguas, eu não acredito em comunicação, não acredito em reação, não acredito em vias de sentido único. E por isso acredito que o conflito, que é uma coisa que curiosamente nós hoje tentamos evitar... Acho que vivemos numa sociedade que tem muito receio do conflito, há emojis a mais se me perguntares, há desenhos a mais, a expressão "queres que te faça um desenho?" passou literalmente a quantos emojis queres para traduzir a minha emoção. Ou seja, há uma desconfiança da palavra, há uma desconfiança do verbo, e, no entanto, eu acredito que o verbo é a primeira das coisas a fazer surgir o mundo. Não é à toa que na Bíblia está “No princípio era o verbo”. E, obviamente, que isto é tudo muito mais intrincado do que eu estou a dizer agora. Podemos não usá-la... Aliás, há um dramaturgo que eu estou sempre a citar, que é o meu dramaturgo favorito (não é o Barker, é o Novarina) que diz que no futuro seremos mudos. Não seremos mutantes, mas mudos... O homem será só com "h" mudo, não será homem, ou seja, será despido da palavra e da linguagem. E acho que é uma espécie de bênção e de má fortuna ao mesmo tempo.
Porque também o que nos separa neste mundo que vivemos e que estamos sempre a pensar nas diferentes espécies? E se há hierarquias ou não? O que é que nos aparta dos outros? Eu diria que muito pouco, mas duas coisas essenciais: a construção de pensamento e a visibilidade desse pensamento através da linguagem. Por isso, ela [a língua] pode ser uma armadura, uma ferramenta, pode ser usada como um machado ou como uma ponte. Essa questão do conflito ou não depende da nossa própria natureza e da forma como encaramos as palavras. Porque palavras como conflito, discussão, violência, barbárie estão em desuso, inclusive aquelas coisas associadas à construção das palavras como "bárbaro"... E, no entanto, é preciso assumir que elas têm um lugar e que elas podem também ser potencialmente generosas para connosco enquanto civilização.
Porquê Howard Barker e estas duas peças especificamente (Judite e Mãos Mortas)?
O Barker é um autor que eu descobri enquanto espectadora muito jovem. Lembro-me de ter cerca de 16 ou 17 anos e ter visto não um, mas vários espetáculos do Rogério de Carvalho, que até hoje continua a funcionar como uma espécie de mestre... É alguém que eu aprecio muito, é alguém com quem não tenho uma relação próxima, mas tenho uma relação afetiva de espectadora e que me marcou muito. E, na altura, com [a companhia] As Boas Raparigas, encenou uma série de Barkers. Penso que o primeiro que vi foi o "Wounds to the Face". E, desde então, aquilo marcou-me por causa do teatro da catástrofe, que é a estética de Barker. Por este mundo potencialmente virulento, violento. Por esta língua que sangra, por este fetichismo absurdo onde tudo fere, onde o mundo é uma constante chaga. E, obviamente, também pela beleza... É muito bonito, é uma chaga muito bonita. A dor também é possivelmente muito bonita, sabemos disso. A imagem mais representada de Cristo é a Via-Sacra, é Cristo na cruz. Porquê? Podiam ser tantas outras e, no entanto, somos atraídos por aquela imagem, por aquela tortura. E, portanto, o Barker já era alguém que eu tinha esta vontade, esta pulsão de encenar quando era uma miúda, quando descobri que queria fazer teatro. E só comecei a fazer muitos anos mais tarde. E depois, claro, há estas coisas dos caminhos, há uma série de coincidências, uma série de fortunas... Encontrar a equipa certa, encontrar um parceiro, como neste caso o Teatro Municipal do Porto. E pensei, quero fazer um díptico. Eu gosto, quem me conhece sabe que eu gosto de extensão, gosto de peças longas, gosto muito disso. Acho que é cada vez mais difícil, cada vez mais raro. Mas é muito importante entrar num teatro e suspender-se no tempo, suspender-se da nossa realidade, não no sentido de ilusão. E quero que o meu espectador saiba que está num teatro. Mas, num sentido de comoção de "agora eu vou entregar-me e vou atravessar aqui o que quer que me tenham proposto". E acho que a extensão, o [Milan] Kundera já falava disto, proporciona isto. A brevidade tem outras vantagens, mas não esta.
Ou seja, o Barker era uma vontade muito antiga e depois pensei vou fazer um díptico. "Judite" era o texto que me interessava há mais anos... A história interessava-me, a história que todos conhecem do Velho Testamento. Interessava-me do ponto de vista de representação do feminino, porque também às vezes me incomodam algumas representações atuais do feminino. Interessava-me por ser uma história sobejamente conhecida, por ter milhares de representações pictóricas, todas absolutamente extraordinárias ou quase todas... E queria cruzar uma tragédia, queria mesmo lançar-me à tragédia. Porque muitas vezes pego em textos que não são tragédias e estou sempre a trabalhá-los a partir do ponto de vista trágico. Para mim tudo é trágico... Estar aqui a respirar e a olhar para ti já é trágico (risos). É sempre difícil habitar o mundo. E "Judite" proporcionava-me isto: emergir numa tragédia e pensar na tragédia contemporaneamente, que também é um movimento difícil. "Mãos Mortas" é outra coisa... Continua com esta potência de morte, que está lá sempre. Passa-se num velório, o pai acabou de morrer e esta mulher é que comanda os dois irmãos. Mas, ao mesmo tempo, é sobre submissão, sobre o desejo, sobre como aquilo que nos parece mais apetecível ser, às vezes, a nossa derrocada, a nossa derrota. E tem este personagem que é absolutamente extraordinário — o FF —, que é uma verborreia, um monstro de linguagem, todo ele uma língua que vai colapsando durante 2h20. E, portanto, isto é absolutamente extraordinário. Mais do que os pontos que unem a duas dramaturgias, eram as coisas que me interessavam enquanto encenadora obsessivamente e que me interessam também noutros dramaturgos.
O que é que o espetáculo pode ganhar ao submeter-se à investigação e à provocação?
Há espetáculos que só têm coisas a ganhar. São duas coisas muito interessantes... Investigação há sempre, uma investigação interna e depois há uma investigação externa. Eu sou um bichinho de teoria. Aliás, a Público Reservado são dois académicos e uma encenadora. Portanto, há muito esta ideia de: nós não separamos, nós fazemos cadernos de encenação, nós fazemos materiais, nós pedimos algumas traduções, nós pedimos textos críticos, nós somos muito disponíveis para a critica, quer interna (somos quase todos marxistas, exceto um que é conservador, até nisso somos democratas), quer externa também, claro. E a provocação é sempre bem-vinda. Acho que faço um trabalho bastante provocador. E, às vezes, provocador basta ser estender o tempo, por exemplo. Isso já é uma provocação... Por vezes, não é o gráfico, ou por vezes não é o expectável, mas propor aquilo que já não se fala, ou que não interessa falar, ou que está a desaparecer. Eu acho que caminho sobre ruínas, acho que o meu teatro tem lugar naturalmente, mas eu sei que eu caminho sobre ruínas. Há cada vez menos pontes, há cada vez menos pedras no meu caminho... Mas eu vou saltando de poça em poça, e as provocações são todas bem-vindas.
A língua (presente na imagem promocional do espetáculo) pode estar na origem de todos os conflitos. E se não a tivéssemos ou usássemos?
Se não a tivéssemos? A língua, o teatro que eu faço, é um teatro da linguagem, habitado por línguas. A língua não é a razão do conflito, ou melhor, é potenciadora de interação e vai sempre causar conflito no sentido interessante da palavra. Porquê? Porque conceptualmente, e é por isso que eu digo que o meu teatro é um teatro da linguagem habitado por línguas, eu não acredito em comunicação, não acredito em reação, não acredito em vias de sentido único. E por isso acredito que o conflito, que é uma coisa que curiosamente nós hoje tentamos evitar... Acho que vivemos numa sociedade que tem muito receio do conflito, há emojis a mais se me perguntares, há desenhos a mais, a expressão "queres que te faça um desenho?" passou literalmente a quantos emojis queres para traduzir a minha emoção. Ou seja, há uma desconfiança da palavra, há uma desconfiança do verbo, e, no entanto, eu acredito que o verbo é a primeira das coisas a fazer surgir o mundo. Não é à toa que na Bíblia está “No princípio era o verbo”. E, obviamente, que isto é tudo muito mais intrincado do que eu estou a dizer agora. Podemos não usá-la... Aliás, há um dramaturgo que eu estou sempre a citar, que é o meu dramaturgo favorito (não é o Barker, é o Novarina) que diz que no futuro seremos mudos. Não seremos mutantes, mas mudos... O homem será só com "h" mudo, não será homem, ou seja, será despido da palavra e da linguagem. E acho que é uma espécie de bênção e de má fortuna ao mesmo tempo.
Porque também o que nos separa neste mundo que vivemos e que estamos sempre a pensar nas diferentes espécies? E se há hierarquias ou não? O que é que nos aparta dos outros? Eu diria que muito pouco, mas duas coisas essenciais: a construção de pensamento e a visibilidade desse pensamento através da linguagem. Por isso, ela [a língua] pode ser uma armadura, uma ferramenta, pode ser usada como um machado ou como uma ponte. Essa questão do conflito ou não depende da nossa própria natureza e da forma como encaramos as palavras. Porque palavras como conflito, discussão, violência, barbárie estão em desuso, inclusive aquelas coisas associadas à construção das palavras como "bárbaro"... E, no entanto, é preciso assumir que elas têm um lugar e que elas podem também ser potencialmente generosas para connosco enquanto civilização.
Porquê Howard Barker e estas duas peças especificamente (Judite e Mãos Mortas)?
O Barker é um autor que eu descobri enquanto espectadora muito jovem. Lembro-me de ter cerca de 16 ou 17 anos e ter visto não um, mas vários espetáculos do Rogério de Carvalho, que até hoje continua a funcionar como uma espécie de mestre... É alguém que eu aprecio muito, é alguém com quem não tenho uma relação próxima, mas tenho uma relação afetiva de espectadora e que me marcou muito. E, na altura, com [a companhia] As Boas Raparigas, encenou uma série de Barkers. Penso que o primeiro que vi foi o "Wounds to the Face". E, desde então, aquilo marcou-me por causa do teatro da catástrofe, que é a estética de Barker. Por este mundo potencialmente virulento, violento. Por esta língua que sangra, por este fetichismo absurdo onde tudo fere, onde o mundo é uma constante chaga. E, obviamente, também pela beleza... É muito bonito, é uma chaga muito bonita. A dor também é possivelmente muito bonita, sabemos disso. A imagem mais representada de Cristo é a Via-Sacra, é Cristo na cruz. Porquê? Podiam ser tantas outras e, no entanto, somos atraídos por aquela imagem, por aquela tortura. E, portanto, o Barker já era alguém que eu tinha esta vontade, esta pulsão de encenar quando era uma miúda, quando descobri que queria fazer teatro. E só comecei a fazer muitos anos mais tarde. E depois, claro, há estas coisas dos caminhos, há uma série de coincidências, uma série de fortunas... Encontrar a equipa certa, encontrar um parceiro, como neste caso o Teatro Municipal do Porto. E pensei, quero fazer um díptico. Eu gosto, quem me conhece sabe que eu gosto de extensão, gosto de peças longas, gosto muito disso. Acho que é cada vez mais difícil, cada vez mais raro. Mas é muito importante entrar num teatro e suspender-se no tempo, suspender-se da nossa realidade, não no sentido de ilusão. E quero que o meu espectador saiba que está num teatro. Mas, num sentido de comoção de "agora eu vou entregar-me e vou atravessar aqui o que quer que me tenham proposto". E acho que a extensão, o [Milan] Kundera já falava disto, proporciona isto. A brevidade tem outras vantagens, mas não esta.
Ou seja, o Barker era uma vontade muito antiga e depois pensei vou fazer um díptico. "Judite" era o texto que me interessava há mais anos... A história interessava-me, a história que todos conhecem do Velho Testamento. Interessava-me do ponto de vista de representação do feminino, porque também às vezes me incomodam algumas representações atuais do feminino. Interessava-me por ser uma história sobejamente conhecida, por ter milhares de representações pictóricas, todas absolutamente extraordinárias ou quase todas... E queria cruzar uma tragédia, queria mesmo lançar-me à tragédia. Porque muitas vezes pego em textos que não são tragédias e estou sempre a trabalhá-los a partir do ponto de vista trágico. Para mim tudo é trágico... Estar aqui a respirar e a olhar para ti já é trágico (risos). É sempre difícil habitar o mundo. E "Judite" proporcionava-me isto: emergir numa tragédia e pensar na tragédia contemporaneamente, que também é um movimento difícil. "Mãos Mortas" é outra coisa... Continua com esta potência de morte, que está lá sempre. Passa-se num velório, o pai acabou de morrer e esta mulher é que comanda os dois irmãos. Mas, ao mesmo tempo, é sobre submissão, sobre o desejo, sobre como aquilo que nos parece mais apetecível ser, às vezes, a nossa derrocada, a nossa derrota. E tem este personagem que é absolutamente extraordinário — o FF —, que é uma verborreia, um monstro de linguagem, todo ele uma língua que vai colapsando durante 2h20. E, portanto, isto é absolutamente extraordinário. Mais do que os pontos que unem a duas dramaturgias, eram as coisas que me interessavam enquanto encenadora obsessivamente e que me interessam também noutros dramaturgos.
O que é que o espetáculo pode ganhar ao submeter-se à investigação e à provocação?
Há espetáculos que só têm coisas a ganhar. São duas coisas muito interessantes... Investigação há sempre, uma investigação interna e depois há uma investigação externa. Eu sou um bichinho de teoria. Aliás, a Público Reservado são dois académicos e uma encenadora. Portanto, há muito esta ideia de: nós não separamos, nós fazemos cadernos de encenação, nós fazemos materiais, nós pedimos algumas traduções, nós pedimos textos críticos, nós somos muito disponíveis para a critica, quer interna (somos quase todos marxistas, exceto um que é conservador, até nisso somos democratas), quer externa também, claro. E a provocação é sempre bem-vinda. Acho que faço um trabalho bastante provocador. E, às vezes, provocador basta ser estender o tempo, por exemplo. Isso já é uma provocação... Por vezes, não é o gráfico, ou por vezes não é o expectável, mas propor aquilo que já não se fala, ou que não interessa falar, ou que está a desaparecer. Eu acho que caminho sobre ruínas, acho que o meu teatro tem lugar naturalmente, mas eu sei que eu caminho sobre ruínas. Há cada vez menos pontes, há cada vez menos pedras no meu caminho... Mas eu vou saltando de poça em poça, e as provocações são todas bem-vindas.

