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Retratos

Lígia Soares

Fevereiro

2023

Sex
17
Sobre A minha vitória como ginasta de alta competição

Podemos olhar para o teu espetáculo como um trabalho autobiográfico? De que forma? O que crês que este espetáculo pode revelar sobre ti e o teu universo enquanto artista?

É um espetáculo autobiográfico se considerarmos que a privação da experiência pode ser tão importante para o percurso de uma pessoa, como o seu acesso.
Passo a explicar: apesar de ter como título uma frase que aponta uma experiência biográfica, só muito indiretamente é que este espetáculo poderá ser categorizado dessa forma. O título, aliás, é uma forma de expor um tema pela sua ausência, considerando o não-acontecimento uma vitória em relação ao acontecimento.
Na verdade, eu teria gostado muito de ter praticado em criança alguma modalidade de alta competição (que atualmente é designado por alto rendimento), mas isso não me foi possível. Digamos que este espetáculo pode ser um ajuste de contas tardio com o que não consegui fazer em criança, mas principalmente a afirmação de que a ausência de contextos de sucesso e de competitividade poderão ser mais compensadores do que a tangibilidade de uma vitória.
Na sua relação com a minha vida, é um projeto que se relaciona intimamente com o facto de ter nascido ainda nos anos setenta e de a ideia de progresso associada ao consumismo, a guerra fria, a divisão do mundo entre vencedores e vencidos estar agora em plena derrocada.

Durante o teu processo de criação, inspiraste-te em algum trabalho autobiográfico ou autorretrato?

Não propriamente. Inspirei-me principalmente numa prática diária que observei ao aproximar-me dos treinos, dos atletas, sempre da perspetiva do observador que reflete sobre o que o corpo humano, que se treina para se superar e superar os outros, pode e não pode. Esta reflexão, sim, fez-me remeter para várias experiências relacionadas com a minha adolescência, formação e origem, mas que me servem agora para pensar de uma forma não pessoal as relações sociais, económicas e afetivas que dispõem as pessoas e as suas vidas numa lógica de sucesso e insucesso. Percorri também vários documentos sobre a vida de atletas icónicas e a sua influência e inspirei-me ao de leve no expressionismo alemão e na sua tentativa de se expressar contra a ortogonalidade e a ordem, para expressar uma dimensão psicológica, enviesada, incerta e afetada pela perspetiva de um fim.

Desejo e frustração, sonho e realização, obsessão ou abstração: de que matérias se pode fazer um retrato? Dirá mais de quem retrata ou de quem é retratado?

Os retratos são matérias muito difíceis porque são tentativas de plasmar uma identidade. Neste projeto, uso todos esses elementos, que são também elementos do drama e do teatro, para enveredar por uma consciência também ela política ou social. Isto é, todos estes elementos emocionais e psicológicos que nos estão entranhados, como se deles emergisse a coisa preciosa e única que é a nossa personalidade, transportam questões muito mais sociais e políticas do que esta obsessão pela identidade nos permite talvez ver. Esta é a questão deste projeto. Se aquilo que nos define os contornos, é tão nosso como do contexto em que vivemos, e nós somos muito menos feitos de acasos e oportunidades do que talvez nos fizeram acreditar.
Deste modo, estou a usar o mundo da ginástica como invólucro para um discurso que quer libertar o mundo do binómio do melhor e do pior, para refletir sobre esse binómio de uma forma mais complexa e crítica e a usar a tenra idade das protagonistas para mostrar a tensão criada entre a tangibilidade desses valores e o intangível do futuro que as aguarda.
No espetáculo, assumimos isso - o teatro a usar a ginástica para dramatizar o tempo em que vivemos, a minha geração a usar jovens ginastas para se refletir a si mesma, as artes cénicas a usarem a modalidade artística – e, por isso, sim, poderá ter mais a ver com o retratista do que com o retratado.

Se o nosso século pudesse autorretratar-se, como é que seria esse autorretrato? E se pudesse retratar o século XX? Numa competição, qual dos dois ganharia?

É exatamente sobre estas questões que esta peça decorre: Quem são agora os vencedores e vencidos? Como é que insistimos em categorizar atos, pessoas e funções perante valores que estão em necessária derrocada? Aquilo que há quarenta anos era a face de um mundo melhor pode ser hoje a face de um mundo em acelerada decadência. E está comprovado que a decadência de hoje é provocada exatamente pelo que antes era motivo de libertação e de progresso, a aceleração da economia.
A ideia de vencedor e de vencido, na minha perspetiva, inverteu-se (ou deve inverter) totalmente com a passagem do século XX para o século XXI. Tal como o consumismo, a produtividade, o nacionalismo e outros valores onde ainda assenta o mundo ocidental. E tudo é, ao mesmo tempo, muito rápido e lento demais e, principalmente os jovens, não sabem o que pensar, nem como agir, vivem como que entalados em dois tempos que se opõem. É, de facto, uma viragem de século, de milénio e de mais alguma coisa que até temos medo de nomear, mas que nos convoca necessariamente a todos.
Na minha opinião, durante o século XX fomos ficando cada vez mais infantis para acordarmos já velhos e com pouca força para um século XXI. E é neste dilema que vivemos.

© José Caldeira / TMP

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