Retratos
Sónia Baptista
Fevereiro
2022
Qui
3
Sobre Triste in English from Spanish
Podemos olhar para o teu espetáculo como um trabalho autobiográfico? De que forma? O que crês que este espetáculo pode revelar sobre ti, enquanto criadora?
O meu trabalho tem sido sempre autorreferencial, pelo menos desde 2013 e pelo menos até eu me fartar de mim. Apesar de eu me fartar várias vezes de mim, e, nesse processo, equilibrado entre o desgosto e a fartura com/do meu mundo, é-me importante sair de mim e ir ao encontro dos outros. Por isso, mesmo que me encante ou me desencante comigo, é na minha experiência pessoal em que eu me fio.
Uma das coisas que me dá mais prazer no ato criativo é tecer os pontos de ligação entre as coisas, é ver essas possibilidades, correspondências, relações, harmoniosas e dissonantes, entre tudo o que existe e o que não existe – é essa magia da investigação e reflexão que tece um padrão que se vai revelando no decorrer da criação e que não se esgota depois do objeto criativo apresentado. O ato de criação é um ato em continuidade, poroso e permeável, sem fronteira entre o material e o imaterial. A revelação é essa, eu, como criadora, sou uma pessoa que revela.
Durante o teu processo de criação, partiste ou inspiraste-te em algum trabalho autobiográfico, autorretrato ou outro tipo de referência (artística ou não)?
Para este trabalho, como para todos os meus trabalhos, parto de um longo processo de investigação com muitas leituras, visionamentos, etc. Muitos links, muitos PDFs, muitos livros. Nem sei por onde comecei...mas sei que, quando se começou a clarificar a ideia de que o trabalho tinha mesmo que partir da minha experiência pessoal, na minha vivência com a melancolia, tristeza e depressão (ideia à qual eu resisti durante muito tempo, em vão, lá está, não queria centrar o discurso em mim) e que essa partilha, na primeira pessoa, era essencial, surgiu-me o problema de como o fazer, como comunicar, como falar de coisas tão pessoais, tão "sérias", tão potencialmente graves sem cair num discurso melodramático, moralista, sensacionalista. A solução, desarmante para o desenhar dessa comunicação, acabou por ser o humor, por dar um passo atrás e observar a minha experiência de fora, a minha experiência em relação com outras experiências. Dizem que o Mark Twain disse: "o humor é igual à tragédia mais o tempo". Por isso, com a leveza das arestas da minha experiência pessoal emaciada pela passagem do tempo, na altura, por exemplo, encontrar um set de stand up da Tig Notaro, comediante americana, intitulado" Hello, I have cancer" (disponível no Spotify, check it out) foi muito importante. Eu pensei: será que eu consigo fazer como ela? Partir da minha tragédia pessoal para falar sobre, neste caso, a vivência e o tabu da depressão? A posteriori, nos últimos anos, conheci os trabalhos da Hanna Gadsby e do Bo Burnham, brilhantes e emocionantes no desmontar do colosso que é a sobrevivência, com doenças mentais.
Vinícius de Moraes canta que “É melhor ser alegre que ser triste. / A alegria é a melhor coisa que existe.” Será? Podemos falar de uma alegria da tristeza?
Hum... é relativo, como tudo, não? A tristeza é um lugar de vivência bom, confortável, saudável, para alguns, como a alegria é para outros. A alegria pode ser, deslocada, alheada do mundo ou demasiado autocentrada, para muitos. A melancolia é um estado de espírito, muitas vezes criativo, cheio de estilo, atraente, fotogénico. Na depressão não há luz, não há chão. Se a depressão cantasse, porque quase sempre o canto não é possível, cantaria: "tristeza não tem fim, felicidade, sim".
Como poderão, eventualmente, dialogar e potenciar-se mutuamente a tristeza e o feminino?
Há uns anos lembro-me de alguns artistas, humoristas americanos dizerem, em jeito de defesa da manutenção dos seus ambientes pouco ou nada woman friendly, que as mulheres não tinham graça, não tinham piada. Dizia-se e diz-se que as mulheres têm menos graças, fazem menos humor, não criam, nem habitam muitas personagens engraçadas. As mulheres querem-se belas e compostas, e o humor quebra a compostura, a beleza não faz rir, a liberdade não é bem-comportada. Muitas vezes o lugar do humor parece, às mulheres, inatingível, perigoso ou um luxo meio idiota, de viver em negação em relação ao peso do mundo, ao peso que é viver neste mudo como ele é, como foi criado, como vai sendo perpetuado. As mulheres, sem voz, as mulheres objetificadas, as mulheres violentadas... como não ser triste? Como não ter, inscrito no código genético, séculos e séculos de profunda tristeza, de desalento, desesperança, resignação? Apesar de tudo, é preciso ter coragem, é vital lembrar – com a tristeza vêm as ganas de lutar, a coragem de lutar pelo fim, deste injusto, mundo.
Podemos olhar para o teu espetáculo como um trabalho autobiográfico? De que forma? O que crês que este espetáculo pode revelar sobre ti, enquanto criadora?
O meu trabalho tem sido sempre autorreferencial, pelo menos desde 2013 e pelo menos até eu me fartar de mim. Apesar de eu me fartar várias vezes de mim, e, nesse processo, equilibrado entre o desgosto e a fartura com/do meu mundo, é-me importante sair de mim e ir ao encontro dos outros. Por isso, mesmo que me encante ou me desencante comigo, é na minha experiência pessoal em que eu me fio.
Uma das coisas que me dá mais prazer no ato criativo é tecer os pontos de ligação entre as coisas, é ver essas possibilidades, correspondências, relações, harmoniosas e dissonantes, entre tudo o que existe e o que não existe – é essa magia da investigação e reflexão que tece um padrão que se vai revelando no decorrer da criação e que não se esgota depois do objeto criativo apresentado. O ato de criação é um ato em continuidade, poroso e permeável, sem fronteira entre o material e o imaterial. A revelação é essa, eu, como criadora, sou uma pessoa que revela.
Durante o teu processo de criação, partiste ou inspiraste-te em algum trabalho autobiográfico, autorretrato ou outro tipo de referência (artística ou não)?
Para este trabalho, como para todos os meus trabalhos, parto de um longo processo de investigação com muitas leituras, visionamentos, etc. Muitos links, muitos PDFs, muitos livros. Nem sei por onde comecei...mas sei que, quando se começou a clarificar a ideia de que o trabalho tinha mesmo que partir da minha experiência pessoal, na minha vivência com a melancolia, tristeza e depressão (ideia à qual eu resisti durante muito tempo, em vão, lá está, não queria centrar o discurso em mim) e que essa partilha, na primeira pessoa, era essencial, surgiu-me o problema de como o fazer, como comunicar, como falar de coisas tão pessoais, tão "sérias", tão potencialmente graves sem cair num discurso melodramático, moralista, sensacionalista. A solução, desarmante para o desenhar dessa comunicação, acabou por ser o humor, por dar um passo atrás e observar a minha experiência de fora, a minha experiência em relação com outras experiências. Dizem que o Mark Twain disse: "o humor é igual à tragédia mais o tempo". Por isso, com a leveza das arestas da minha experiência pessoal emaciada pela passagem do tempo, na altura, por exemplo, encontrar um set de stand up da Tig Notaro, comediante americana, intitulado" Hello, I have cancer" (disponível no Spotify, check it out) foi muito importante. Eu pensei: será que eu consigo fazer como ela? Partir da minha tragédia pessoal para falar sobre, neste caso, a vivência e o tabu da depressão? A posteriori, nos últimos anos, conheci os trabalhos da Hanna Gadsby e do Bo Burnham, brilhantes e emocionantes no desmontar do colosso que é a sobrevivência, com doenças mentais.
Vinícius de Moraes canta que “É melhor ser alegre que ser triste. / A alegria é a melhor coisa que existe.” Será? Podemos falar de uma alegria da tristeza?
Hum... é relativo, como tudo, não? A tristeza é um lugar de vivência bom, confortável, saudável, para alguns, como a alegria é para outros. A alegria pode ser, deslocada, alheada do mundo ou demasiado autocentrada, para muitos. A melancolia é um estado de espírito, muitas vezes criativo, cheio de estilo, atraente, fotogénico. Na depressão não há luz, não há chão. Se a depressão cantasse, porque quase sempre o canto não é possível, cantaria: "tristeza não tem fim, felicidade, sim".
Como poderão, eventualmente, dialogar e potenciar-se mutuamente a tristeza e o feminino?
Há uns anos lembro-me de alguns artistas, humoristas americanos dizerem, em jeito de defesa da manutenção dos seus ambientes pouco ou nada woman friendly, que as mulheres não tinham graça, não tinham piada. Dizia-se e diz-se que as mulheres têm menos graças, fazem menos humor, não criam, nem habitam muitas personagens engraçadas. As mulheres querem-se belas e compostas, e o humor quebra a compostura, a beleza não faz rir, a liberdade não é bem-comportada. Muitas vezes o lugar do humor parece, às mulheres, inatingível, perigoso ou um luxo meio idiota, de viver em negação em relação ao peso do mundo, ao peso que é viver neste mudo como ele é, como foi criado, como vai sendo perpetuado. As mulheres, sem voz, as mulheres objetificadas, as mulheres violentadas... como não ser triste? Como não ter, inscrito no código genético, séculos e séculos de profunda tristeza, de desalento, desesperança, resignação? Apesar de tudo, é preciso ter coragem, é vital lembrar – com a tristeza vêm as ganas de lutar, a coragem de lutar pelo fim, deste injusto, mundo.