A circunstância da apresentação
Uma conversa com André Guedes
Tiago Bartolomeu Costa
May
2021
Fri
28
Com Chronicle X Der Grune Tisch, a sua primeira colaboração com a Companhia Nacional de Bailado, o artista visual André Guedes (Lisboa, 1971) expande a experiência de encontro entre a memória e a matéria histórica, com a presença física e o comprometimento com o presente, elementos constitutivos de um percurso habitado pela confluência entre as artes visuais, as artes performativas e a arquitetura. A partir de um trabalho de investigação, acompanhado pela investigadora Catarina Canelas e com composição gráfica de Ana Baliza, o espaço do Teatro Camões transforma-se em antecâmara de um tempo cuja premonição de Martha Graham e Kurt Jooss são motor de inquietação para os tempos que vivemos. Os materiais escolhidos, as cores convocadas, os textos retrabalhados e as imagens utilizadas, constituem, na deambulação programática a que o visitante-espetador é sujeito, ou confrontado, um modo de ativação da responsabilidade cidadã perante o curso da história. Ele chama-lhe genius loci, o espírito do lugar, para falar das circunstâncias de apresentação, recuperando um conceito que os arquitetos neo-racionalistas dos anos 1970-1980 reabilitaram, e que remete para (a identificação por parte dos arquitetos de) vários aspetos morfológicos (físicos ou não) que caracterizam um lugar. E, portanto da abordagem projetual se relacionar, adaptar, dialogar, integrar com/face a eles. Bem-vindos à antecâmara do passado-presente.
Estamos perante uma cenografia para um espaço cénico, ou entre uma exposição e uma instalação?
Enquanto artista e cenógrafo, este é um caso particular, já que se apresentam aqui elementos que podem sugerir tratar-se de uma exposição sobre duas coreografias mas que, no tratamento que lhes dou, procuram distinguir uma da outra. Diria que é, de facto, uma exposição, mas que se presta a alguns equívocos que a aproximam de uma cenografia, e para a qual, procurei trazer elementos marcantes que se relacionassem com o que de mais representativo existe nas duas peças [que são dançadas], desde logo as cores: o verde, que está presente na mesa de Kurt Jooss, e o preto e o branco, que surgem como matrizes cromáticas no elemento escultórico de Isamu Noguchi, na peça da Marta Graham, Chronicle.
Como esta última peça é ligeiramente modificada conforme os contextos em que é apresentada 1, a estranheza de se lidar com esse material levou-nos a querer fazer uma reposição histórica e contextual através de uma deambulação espacial onde os materiais inertes de leitura, textuais e visuais, produzissem no visitante, que será também espetador, um tipo de interação dinâmica entre o espaço e a sua presença. As diagonais, no piso intermédio, criam uma mobilidade que favorece a descoberta dos materiais, mas também a redescoberta de um espaço que não é fácil de intervir. Tentei potenciar o que já existia, nomeadamente o vidro, através de panos evocativos, com a consciência de que no período em que as peças foram feitas, a representação e a propaganda política passavam por estratégias de expressão próximas deste tipo de dispositivo .
A sua disposição no espaço é uma resposta ao modo como pode ser ocupado por quem o percorre?
Se tiver de escolher entre a simetria e a assimetria, escolho a assimetria como ordem natural das coisas. Interessa-me sempre moldar essa espacialização, pelo que, e apesar de breve 3, foi muito interessante perceber como a arquitetura do Teatro Camões permite observar o uso que as pessoas dão ao espaço. A sua presença aconteceu de forma natural, criando um sentido adicional a uma proposta que, simbolicamente, apresenta diagonais que atravessam um espaço não regular. Na janela temos um plano bidimensional, que por sua vez é um plano funcional, porque têm uma dupla existência, servem para interromper a cidade que deixamos para trás, e apontam na direção do interior do teatro, onde decorre o espetáculo. Mas tudo o resto são linhas que interrompem e desestabilizam o percurso anunciado e estabelecido de uma arquitetura à qual, em certa medida, todos os teatros devem responder, e que neste não é particularmente estimulante.
Existe no teu trabalho, mais frequente nos projetos de galeria que nos de cenográficos, é certo 4, uma necessidade de negociar o lugar do objeto e o da presença de quem o vê, nunca quem ocupa o lugar do quê. Isso também é patente nesta exposição que obriga a uma deambulação e a um movimento de quem observa.
Posso dizer que sim. Foram feitas experiências de leitura de blocos de texto com determinado tipo de fonte e posicionamento dos limites desses textos, mas a sua disposição foi pensada para ser o mais ergonómica possível. É verdade que implica uma certa mobilidade do espetador, porque não se lê um texto naquela escala, à mesma distância com que lemos um livro, mas esse é um dos elementos que, em diálogo com os elementos cenográficos, reivindica um vocabulário que faz parte da sintaxe da prática cénica.
Não falo propriamente de uma proposta cénica dos cenógrafos — ainda que o vestido de Chronicle seja uma peça de arquitetura 5—, mas, por exemplo de uma bandeira usada numa sequência que não faz parte desta remontagem, feita em material translúcido, e da qual recuperamos uma imagem porque estabelece um diálogo com a ontologia do espaço cénico, ao qual raramente prestamos atenção. Falo de pernas, bambolinas e cortinas 6 que constituem um aparato cénico que, não sendo cenográfico mas técnico, cria e determina uma escala para o olhar, que é semelhante à que criei para que fosse necessário aproximarmo-nos para ver e ler o que está exposto.
Ao reler algumas notas que escrevi recentemente sobre este projeto 7, identifiquei esta oposição curiosa entre espaço e elementos cénicos, que transformam o espaço da exposição numa antecâmara, ou num vestíbulo que permite, conforme possa ser usado, ocupar ou sair para fora do palco. E esta ambiguidade não tem cabimento numa proposta cenográfica, porque introduz elementos que, para mim, estão na esfera das artes visuais e que, se esta fosse uma proposta de artes performativas, ou existia num formato expandido ou discurso, ou era ignorado.
Há a intenção de ser criado um mesmo espaço, onde exposição (material) e espetáculo (imaterial) partilham os mesmos princípios e valores sobre o que está a ser dito e mostrado?
Em boa medida, os conteúdos que estavam na proposta da direção artística da CNB não premeditaram os conteúdos que deveriam ser incluídos. Houve uma vontade de trabalhar com o arquivo e com a memória da companhia, que já havia feito A Mesa Verde 8. O programa com o Chronicle permitiu-me perceber que se estas peças estão num tempo relativamente longínquo ao nosso, são premonitórias quanto a esse mesmo tempo — da violência, do horror, do mal —, o que as torna temporalmente transversais. Consigo encontrar antecedentes e preexistências no meu trabalho, que fazem com que algumas soluções formais sejam respostas espontâneas a um hábito de resolver questões espaciais, relacionadas com a minha formação em arquitetura, artes plásticas e prática de cenografia. Mas, se o meu trabalho em artes visuais tem uma dimensão meta narrativa, ou documental, o meu papel aqui, não é tanto o de historiador, mas o de investigador. E, o excelente trabalho de investigação que a Catarina Canelas fez, sobre a transmissão e remontagem das peças, permitiu encontrar pontos de análise onde existiam hiatos históricos.
Os elementos históricos que são aqui trabalhados, bem como os seus materiais, têm uma relação de importância ou hierarquia, com o espetáculo?
Se estas peças têm uma importância enquanto documento, têm-no porque a urgência dos seus temas, encontra uma validade nos nossos dias. Ainda que modestamente, diria que a minha função, enquanto arquiteto ou cenógrafo, é a de proporcionar a um espaço tão hierático e despido como aquele, uma certa condição de acolhimento do espetador. O tecido, enquanto elemento físico desta exposição, participa disso. Se serve de enquadramento para o espetador, cria um tempo que já não é histórico, mas também não é nosso. Podemos equivaler-nos, mas não lhe pertencemos, porque os elementos narrativos que o estruturam, da sua formação até à atualidade, propõem uma experiência para além do cognitivo, quase sensorial.
E, nesse sentido, que lugar pode ocupar, na perceção de conjunto, o momento em que se acede a esta exposição?
A exposição quase que funciona como uma antecâmara do próprio espetáculo e com os fantasmas de um espetáculo composto por peças históricas, sem saber se os espetadores são visitantes antes ou depois de verem o espetáculo. Mas, realmente, não sei em que momento os espetadores se tornam visitantes, se antes ou depois de verem o espetáculo. Diria que a visitam no intervalo, mas é verdade que a exposição antecipa e envolve o programa, e essa função também foi procurada, um pouco como quando, na remontagem de uma coreografia, tanto maior será o seu impacto quando mais crítica for a contribuição para o nosso presente, sob pena de, caso isso não aconteça, estarmos perante objetos inertes.
Falamos, então, de uma necessidade de uma reflexão sobre o que pode ser um processo de contextualização, não apenas do que vamos ver em palco, mas do que de lá levamos para a cidade da qual viemos?
Entendi sempre que a minha proposta era como uma folha de sala expandida e essa ideia resulta em boa parte do trabalho com o [encenador] Miguel Loureiro 9. Esse gesto de pensar como essa informação pode ser elaborada e transmitida, é afirmado, e é mais importante do que uma interpretação conceptual sobre as duas peças, fosse ela escultórica ou uma instalação. A exposição é, em boa medida, um trabalho de investigação que se traduz numa exposição que enquadra, plástica e textualmente, uma investigação que, sendo rica, merecia ser partilhada. Como autor, estabeleço que, sendo este um trabalho de investigação e exposição, o artista é um investigador. Ao fazê-lo desta maneira, respondo ao desafio da direção artística, que procurava uma abordagem e dinâmica espacial distintas. Para mim, é isto se distingue de uma exposição de artes visuais.
É verdade que, no teu percurso, sempre interessaram os dispositivos fronteiriços e de perceção...
Diria que é acidental, porque o que me agrada é pensar nos modos como uma produção é feita e, conforme os contextos, perceber que há estratégias que são simultâneas e coincidentes, mas há outras que são diferenciadas. Este estatuto de artista-investigador, ao qual é somada uma fronteira de vivência entre as artes visuais e um passado com formação artística muito pouco ortodoxo, corresponde, em franca medida a um lugar confortável para se estar. É um lugar ambíguo mas estimulante. Mas se digo que é acidental, também direi que é inteiramente consciente a vontade de trabalhar com determinado tipo de dispositivos. Digo que se constitui através de objetos onde isto é hiper-consciente.
Há uma ética que subsiste a tudo isso, até na escolha dos materiais e do modo como serão dispostos que, escolhendo não escolher, os materiais se impõem.
Há uma orgânica à qual sou permeável, e a que me interessa que passe muito pelos interlocutores e os enquadramentos nos quais eles se desenvolvem. Tudo isso constitui uma espécie de ecologia para o habitat do projeto, que é construído, receciona e transmite o que entende que faz sentido. É uma situação que se alimenta dos dois lados, como qualquer projeto colaborativo.
Há uma constelação de matérias mais físicas e outras mais imateriais que apontam hipóteses de interpretação que têm muito que ver com um lugar de pertença enquanto cidadão e ente pensante. É o próprio dispositivo que é questionado, através do modo como se apresenta.
Sim, e isso interessa-me muito, até no sentido político. O primeiro lugar não é necessariamente físico, mas sim a circunstância de apresentação. Estamos a falar de contextos, algo que, para mim, está muito ligado à experiência de formação enquanto arquiteto, onde procura saber como intervir, não apenas nas micronarrativas, mas numa maior proximidade com interlocutores e o aspeto humano das suas vivências. E isso era algo que, nos anos 1990, era uma reação ao que sentia ser um enorme défice, por parte de nós estudantes, para com as preocupações sociais os meus anos de formação.
No processo de reflexão sobre como se poderia desenhar uma arquitetura para todo esse trabalho de identificação, levantamento e transformação dos materiais, era também uma forma de antecipar uma forma de vivência destes espaços expositivos?
Sim, é. Entender esta exposição como uma antecâmara para o palco, é pertencer ao espaço lá dentro, que traça uma linha entre essa peça onde vamos entrar, e a cidade que deixamos para trás. E esse é o ponto de convergência entre os meus projetos, entre o que é casuístico ou espontâneo, e cuja resposta integra elementos da uma experiência cognitiva, sensorial e até histórica, e o que não é apenas deslocação do palco para o espaço do vestíbulo.
1. Existem diferentes versões, conforme os contextos de apresentação, sendo que a versão integral compreende seis quadros, em vez dos quatro aqui apresentados, naquela que é uma prática assumida, desde os anos 1990, pela administração da companhia que detem os direitos da obra.
2. É o caso das cenografias criadas por Albert Speer a pedido de Adolf Hitler, para os comícios do Partido Nacional-Socialista.
3. A exposição inaugurou a 11 de março 2020, acompanhando o programa Dançar em Tempo de Guerra, interrompido, na sequência do estado de emergência.
4. Representado pela Galeria Vera Cortês, o percurso artístico de André Guedes pode ser consultado em https://www.veracortes.com/artists/andre-guedes/works.
5. A coreógrafa Martha Graham assinou, também, os figurinos de Chronicle, num gesto que estende o movimento realizado pela bailarina, na sequência inicial da coreografia.
6. Os termos utilizados fazem referência ao panejamento lateral, superior e de retaguarda que, normalmente, delimitam o espaço cénico e o separam da zona de bastidores.
7. As notas foram produzidas no âmbito da investigação para o Doutoramento em Arte Multimédia na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.
8. A Mesa Verde entrou no repertório da CNB a 13 de Maio 1984, num programa estreado no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa.
9. Referem-se, nomeadamente, as peças Nova, Caledónia (Culturgest, Lisboa, 2014), cujo programa pode ser consultado em https://pre2018.culturgest.pt/2014/docs/novacaledonia_fslite.pdf e Como rebolar alegremente sobre um vazio exterior (Festival Alkantara, Teatro Carlos Alberto, Porto, 2010), cujo programa/livro pode ser consultado em //www.after8books.com/como-rebolar-alegremente-sobre-um-vazio-exterior.html.
Entrevista realizada em abril de 2021, por Tiago Bartolomeu Costa